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Ouvem-se piares, miares e ladrares em quintais de antigamente, hortas, limoeiros e capoeiras. Quando não havia necessidade de elevadores, está tudo dito. Para o bem ou para o mal, em absoluta ignorância do anonimato entre vizinhos.
Ouvem-se histórias de animais de estimação, um designativo de montra de loja para fidelidades inquestionáveis, perdas choradas, quase gente da casa. Mais do que nunca nos dias de hoje, assolados pela carestia, o desemprego, a insegurança, um diabo de vida quantas vezes amaciada pela brincadeira do cachorro, o ronronar do bichano. Isto não é ainda uma selva, há sentimentos, e o inesperado aconteceu a semana passada, quando cheguei para o almoço – o gato escorregara e caíra da janela do primeiro andar.
Cá de cima recomendava-se-lhe calma. Lá em baixo um felpudo mini-canídeo incentivava-o à brincadeira. São os dois de tamanho idêntico… O felino resmungava, todo encostado a um canto da marquise e soprava a cada arremetida do inofensivo outro animalzinho. Assim não íamos a lado algum, a situação era gravíssima, tudo podia terminar numa fuga em pânico por esses muros fora, na incomensurável imensidão do mundo famalicense.
Deste modo, e nesta velhice, nos descobrimos no desespero de um, por assim dizer, ente querido em perigo. E todos os apartamentos do piso inferior sem vivalma, o eco das campainhas a furar-nos de angústia o espírito!
Também não havia por que chamar os bombeiros. Os bombeiros vêm sempre quando os gatos fogem para cima, para as árvores, varandas, ou outras inóspitas paragens nas alturas. Jamais quando eles descem ao logradouro da vizinha e miam pela gente e se eriçam à vista do pretenso atacante. A solução estava em bater à porta do prédio confinante, em busca de algum caridoso rés-do-chão, e depois galgar pátios até ao local onde o drama ia já no seu auge.
Abreviando agora, até ao exacto momento em que, o coração a sair-me pela boca, o gato me abraçou a camisola com as suas garras. E ao retrocesso, assim estafado, em mais uns cinquenta metros barreiras. Com muita vizinhança à janela, atenta, preocupada, a querer saber de que andar ele caíra, a contar histórias, episódios semelhantes, coitadinho do bicho!, estaria magoado?...
Era o anonimato lutando contra ele próprio. A solidariedade do prédio, da correnteza toda, um congresso de condóminos. Nada prejudicado pela ausência de nomes nestas linhas, mesmo o gato omite o dele, aliás em casa é assim, Ah gaaato!!!, ameaço eu quando o vejo guloso, de olhar fixo no canário.
Tudo como no tempo das hortas, limoeiros e capoeiras. Da pré-história do tal anonimato agora em luta com ele próprio. Afinal havia mais vizinhos do que portas! Coitadinho do bicho!, estaria magoado?
Não, não estava. E assim percebeu regressava a casa pela entrada da frente, não quis mais saber de colo e da malha da minha camisola e esgueirou-se pelo seu pé até junto da dona. Deixando-me nos derradeiros agradecimentos aos vizinhos com a aguçada marca vermelha das suas unhas na minha carne. Ah gaaato!!!
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 09.ABR.2015)