"Deixou-nos, o Sr. João"
A notícia estava numa parede qualquer, informando já sobre o 7º dia. Que triste surpresa! O Sr. João (ignorava fosse conhecido por Barãozinho) morreu na respeitável idade de cem anos. Não vai muito tempo, recordei-o neste bocado de escrita, alimentando ainda a esperança de o visitar na sua residência da Rua Direita e conversar um pouco, registar memórias, trechos do passado famalicense. Tudo quanto o estonteante ritmo de hoje calca e abafa e impede ocupem o seu lugar na História.
O Sr. João, era eu garoto, tinha a sua barbearia junto à Matriz velha. Havia uma frutaria magrinha, um pronto-a-vestir com laivos de modernidade nas montras, uma porta onde permanecia de sentinela, a manhã toda, um senhor já idoso, sempre enchapelado e engravatado, de sobretudo e sorriso estático, percebia-se-lhe um olhar atentíssimo por trás dos pesados óculos de massa maciça à moda da época; e logo a seguir o estabelecimento – venerando, revestido a espelhos, com um farto cabide na parede sobre a mesa de pau e as duas cadeiras, tudo em tinta esverdeada, para os clientes à espera, e outras duas, giratórias – girando pesadamente em ferro forjado – onde se desenrolava a arte do Sr. João. Era no tempo do Zé da Praça, da Confeitaria Vieira de Castro, do A. de Sousa Lopes e de tantos mais ecos dos anais do comércio na Rua de Santo António. Em cujo rodopio toda a gente conhecia toda a gente.
Só pode ser por isso o F. C. Famalicão (outra vez em alta, felizmente, desde que voltou a chegar aos quartos-de-final na Taça) tivesse decerto mais adeptos e sócios, nesses idos em que a bola era mais redonda e a equipa local saltitava normalmente a meio da tabela da II Divisão (Zona Norte), com esporádicas investidas à I; e uma defesa compenetradíssima impedindo sempre as suas redes fossem violadas pela vergonha da descida à III. Toda esta problemática era minuciosamente dissecada, analisada, discutida, enquanto a navalha escanhoava ou as tesouras trique-tricavam as cabeleiras. Fora isso, havia os jornais da terra e quase nada de política; e entre nascimentos, casamentos, aniversários e óbitos, sobeja margem para entretenimento, acrescida em grosso caudal acontecendo algum acidente. Isso então era conferência para o dia todo, tantos os conferencistas convidados, alguns de fora, dos passantes na rua.
Mas acaso sobreviessem alguns segundos ausentes de tema, logo o Sr. João, as tesouras em riste, chasqueando, prontas a cair sobra a cabeça do paciente – logo o Sr. João, resignado, reticente, exclamava – É assim a vida!...
Era assim a vida. Animada de coisas pequeninas e intervalos em que se ouviam as moscas. Com vagar para distinguir e gozar o sol e os dias chuvosos. E coleccionar amigos, reencontros no regresso, sempre um abraço, nem as minhas alvas barbas dissuadiram alguma vez o Sr. João de continuar a tratar-me pelo diminutivo dos longínquos e imberbes anos dessas idas à tosquia.
Trago comigo um lugar especial para estes famalicenses antigos que o Tempo foi levando. Eles estão na Eternidade do Além, mas nada como eternizar-lhes também a memória cá em baixo. Imaginem, nascido em 1914, os acontecimentos históricos testemunhados pelo Sr. João! Mas, insisto, não é só – há um conceito de vida, de relações humanas, há um assobiar o quotidiano em que havemos de, entre a multidão e os horários, caminhar vagarosos, no vagar desses afectos de então.
(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 19.JAN.2015)