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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

""Encontros de Outono" com o Ultramar

João-Afonso Machado, 04.12.14

TROPA DE LINHA.JPG

A “inspecção” era um acontecimento marcante. A gente fazia-a aos 18 anos e dela dependia o nosso glorioso futuro militar. Havia sempre uma carta-convocatória e uma certa manhã, bastante madrugadora, num quartel do Porto, reunindo mancebos oriundos de todo o Minho e Trás-os-Montes.

Quando compareci a esse tremendo julgamento de armas, entrara já na Faculdade e fui reencontrar muitas caras conhecidas de S. Tiago da Cruz, rapaziada do meu tempo de catequese. Foi em 1978. Recebeu-nos um sargento redondíssimo, já de meia-idade, tarimbeiro, que, direito quanto conseguia, logo nos agraciou com uma breve alocução patriótica, a provocar incontrolada e sonora – e contagiante… - gargalhada de um punk de Bragança. A apoplexia do denodado sargento esteve iminente, como era possível a sua exortação ser assim acolhida? Enquanto isso, outros militares, de aspecto mais desembaraçado, circuitavam entre nós, inquirindo se alguém pretendia ir para os Comandos. – Não, obrigado, vou para a advocacia… - E depois avançámos para a medição e a pesagem. Nessa altura, um outro sargento, admirado com a minha extrema magreza e atento à minha identificação, quis saber se eu não era familiar do nosso coronel fulano de tal, com quem ele estivera não sei onde no Ultramar… Por acaso era… - Olhe, eu tiro-lhe aqui um quilinho – e apontava para o papel à sua frente – e o meu amigo vê-se livre disto, está abaixo do peso mínimo…

Por acaso, convinha-me. A tropa era um estorvo, a recruta em Tavira um empecilho ao meu estágio e, portanto, aos meus primeiros passos forenses. Além de que, de um modo geral, acho que as fardas não me assentam bem. Mas nunca gostei de ficar inapto para as coisas da vida. Pelo que recusei a amável dádiva. – Não, não, deixe lá o quilinho no sítio, obrigado. – E o atónito sargento, julgando estar a lidar com um tolo, impedido de assim homenagear o nosso coronel de grata memória, acabou inscrevendo correctamente os cinquenta e poucos quilinhos que eu pesava então.

No fim, foi um almoço penosamente mastigado, uma espécie de bacalhau à Brás sem salsa e azeitonas nem espinhas, porque também lhe faltava o expectável bacalhau. Após o que, verifiquei, todas estas milícias d’aquém Douro, metodicamente organizadas, marcharam a conhecer os encantos de algumas vielas tripeiras.

Quatro anos antes, quando a Revolução de Abril pôs cobro à II República, nenhum de nós, no essencial, ignorava o que se passava em África. Somente, o tempo parecia espreguiçar-se tão arrastadamente, o espectro da guerra a ninguém tirava o sono e era até uma diversão mázinha assistirmos ao desfile dos soldados na TV, enviando de lá, às respectivas famílias, votos de bom Natal e de um Ano Novo cheio de «propriedades». Não nos ocorre, agora mesmo, não fora o 25/A, depressa nos veríamos incorporados e de malas aviadas para um destino muito pouco simpático.

São tudo memórias trazidas à tona por ocasião dos recentes Encontros de Outono, este último fim-de-semana na Casa das Artes. Subordinados ao tema «Colonialismo, Guerra Colonial e Descolonização». Um desfile de perspectivas diversas, o produto de estudos actuais sobre este capítulo da nossa História ainda fresca. Mas, aqui e ali, com mostras de um congelamento que a deteriora. Como se dirá.

A participação do público, muito animada, veio enriquecer o tema da descolonização com alguns testemunhos pessoais, obviamente indispensáveis a um registo que se pretende idóneo. O pós-independência em Angola, para dar um exemplo, foi uma «tragédia», na expressão de alguém da plateia, então alferes-miliciano em Luanda onde, perante a chegada dos MPLA’s, UNITA’s e FNLA’s, recebeu ordens para quase andar desarmado no patrulhamento da cidade. Sofreu – contava ele – emboscadas, ataques, autênticos bombardeamentos, viu morrer muitos e muitos camaradas, mortes escusadas, e foi castigado por, desobedecendo a essas inusitadas ordens, se armar convenientemente para evitar a continuação do massacre.

E, muito claramente neste evento, o academismo oficial pareceu querer desconhecer ou ocultar tão fiáveis documentos, o depoimento de quem lá esteve, no «teatro de guerra». Ora, a História são os factos e a sua interpretação. Àqueles, aproveita a sua mais exacta reprodução; a esta, a imparcialidade de quem julga e a serenidade proporcionada por alguma distância temporal. O que decididamente é um absurdo é atribuir-se a hermenêutica de qualquer matéria histórica aos que nela intervieram directamente. Podemos compreender, no julgamento do Passado, advogados de defesa ou acusação; juízes em causa própria – nunca.

E, na minha humilde reflexão, isso acontece em Portugal. Consequência, provavelmente, da solidariedade – ou mesmo da rivalidade – entre camaradas de armas no que tange à Descolonização.

 

(Da crónica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 04.DEZ.2014).