As escadas em madeira escura, maciça, curvando sobre a esquerda, são a ponte para a grande travessia. Ainda na margem de cá, a majestosa bigodaça do recepcionista, o seu olhar congelado no Tempo, e os penduricalhos das chaves vazias porque o hotel está cheio. Não tarda a lareira será acesa, os dias vão já diminutos, anoitece cedo. Joga-se afincadamente as damas no salão contíguo e há um pedido de telefonema urgente, uma corrida travadinha para a cabine. - Alô! Alô! – Podem falar… - informa a voz nasalada da menina do PBX. Sim, o Patrão não dispensa ser inteirado sobre o andar dos negócios, a vida de caixeiro-viajante é isto e o dever está sempre à frente da vontade de desapertar os sapatos.
Os anais não registam o serviço de quartos. Dá um pouco de folga à gravata, desabotoa o colarinho e lança-se pesadamente aos degraus, em contagem decrescente, extenuada. Lá em cima, logo no início do primeiro corredor, infindo… Teve sorte, o aposento com vista para a Rua de Santo António, o colchão ajudando muito ao sono, a cama larga. Já não consegue acertar com o chapéu no cabide. Estafante dia!
Passa pelas brasas. Uma meia-horita. Escureceu já quando acorda, corre à janela, não quer ser comido pelos mosquitos. Em baixo, um desses gigantes americanos, é um De Soto, rebola preguiçosamente sobre o empedrado perseguido pela curiosidade dos gaiatos. Tivesse um assim… Mas não, não são horas de sonhar, nem de se compadecer com lamúrias. Amanhã o comboio levá-lo-á de regresso ao Porto e está aí uma meia dúzia de clientes por visitar ainda.
Abre a torneira do lavatório, molha o pente e curva-se diante do espelho. Vai pela maleta, onde deixou o frasco da brilhantina, e não esquece aquele toque especial no bigodinho à Clarque Gueible, ou como é que se diz, uma mirada final. E sai e desce então ao restaurant – à adega, lá para os seus botões. Na cave, claro, porque no piso da entrada é a sala monumental de jantar, com serviço à lista, preços tão afastados do seu bolso!, também não o desgostava a água quente no seu quarto, um apartment como não entrou ainda em algum.
Aperta os botões do paletó, não conta senão com os colegas de ofício e alguns conhecidos da terra, amantes da pinga, mas a apresentação é sempre importante, não se cansa o Patrão de lhe recordar. A tigela de caldo verde, duas sandes de presunto, um copito bem aviado do branco fresquinho da casa, e o resto serão as mais recentes façanhas dos 5 Violinos até chegar a hora da deita. É sempre assim uma vez em cada mês. A um canto, a telefonia sintonizada na Emissora Nacional e a Amália cantando o fadário todo de quem tem de batalhar pela vida.
(Que será feito dele, do Sr. Santos, um de tantos Srs. Santos durante mais de 50 anos pernoitas regulares no Hotel Garantia? Onde repousará agora, fora do Tempo, o Sr. Santos e o seu bigodinho à Clarque Gueible, ou como é que se diz, a camisa sofrivelmente engomada e os joanetes doendo calados no desconforto dos sapatos a pedir graxa?
A História não sabe. Não conhece a sua descendência, se a teve, e por isso a não pode agora chamar ao palco. A História tem destas crueldades. Apenas consente lhe sintamos os pachorrentos passos subindo as escadas, contando decrescentemente os degraus, em mais um fim de noite, diabo de vida a do caixeiro-viajante através do Passado, memória sem contornos, somente intuição no lado de lá do cerrado dos estores. Até que o Futuro retorne ao Presente. Aquando do ressuscitar do Hotel Garantia, para quem já nem nota, aí mesmo no centro de V. N. de Famalicão. Perguntem ao bigodaças recepcionista, é mesmo no termo do regresso da grande travessia).
(Da crónica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 23.OUT.2014).