Todos sabem, as barbearias sempre foram locais de ciência e informação. Compêndios de arte retórica, caixas de eco, o que quiserem. Provavelmente, os mais antigos e mais amplos momentos de fiável e sã liberdade de expressão do pensamento. Não exagerarei imenso ao afirmar lá se traçaram capitais destinos das populações nas terras menores.
Mas esta é uma percepção produto apenas do avançar da idade. Antes, as barbearias eram instâncias de suplício – quieto, menino! – E o “menino” mantinha o esforço hercúleo da sua cabecita à banda, enquanto o artista lhe recortava o cabelo em volta da orelha.
Assim não posso esquecer o Sr. João da Matriz, aquela velha barbearia na Rua de Santo António quase paredes meias com a igreja. Onde o meu Pai me conduzia na infância, sempre que soava a hora da tosquia. E onde, chegada a minha vez, sentava num banco de pau colocado em cima da anafada cadeira giratória. A toalha num torniquete a estrangular o pescoço, firmada num alfinete, a tesoura trique-trique, em amena cavaqueira, e o Sr. João repetidamente dirigindo-se ao Pai – está bem assim? – e o Pai insistindo em mais corte, menos repas, o tempo a passar em exasperante vagar…
O Sr. João – muita atenção! – era um amigo. O mundo, então como agora, decompunha-se em política (nem que fosse a política dos preços ou do castigo da banditismo) e em futebol (arbitragens incluídas); mas, naqueles verdes meus anos, a dita política constituía o lado lunar desta vida onde refulgiam Eusébios e outras estrelas lisboetas versus a heróica resistência azul-branca portista. O Sr. João fazia de “advogado do diabo” e sabia transformar a pasmaceira de tais manhãs em salutares picos de controvérsia, mesmo de alguma excitação, ao ponto de se tornar necessário recomendar a moderação dos gestos – esteja quieto menino, olhe que ainda se corta a fazer a barba! – sobretudo quando a navalha rapava já a penugem da nuca.
Um verdadeiro pedagogo, o Sr. João! Felizmente ainda vivo, quase centenário. Descobri há pouco onde reside, sei-o adoentado e espero, por isso, a altura favorável para uma visita e dois (vezes muitos dois) dedos de conversa. Invocando tantos famalicenses, tanta gente já desaparecida do comércio da Rua de Santo António, sua cliente no corte do cabelo ou no diário desfazer da barba.
E, com o correr das décadas, muitíssimas foram as mudanças. Onde pararão aqueles estranhos objectos metálicos que, à força da pressão digital numa bola de borracha, bufavam para cima de nós não sei que espécie de perfume típico das barbearias? Ou os talcos, as pedras que estancavam alguma gotinha de sangue, o álcool fresco e ardente, as tiras de cabedal para afiar navalhas? E a velha telefonia noticiosa e fadisteira? Com o correr das décadas, as barbearias transformaram-se em cabeleireiros. Adquiriram televisões, jornais e revistas, quase criaram salas de espera. Multiplicaram, cada uma, os barbeiros – os cabeleireiros… São tudo inovações que constato entre os jovens operacionais da Orly, onde presentemente aparo a barba ou ajusto as minhas cãs alvíssimas, sempre a acrescentarem uma dúzia de primaveras às bastantes que já somo. (Isto no juízo distraído da quase generalidade das pessoas, é claro.) Mas o sentido de humor característico destes estabelecimentos permanece. Política e futebol, como jamais deixou de ser. E toda a parafernália de “segundos sentidos”, a laracha costumeira, a brincadeira acutilante a amenizar tanta desgraça, tanta trapalhada nacional, com toda a potência do after shave final. Last but not least, o moderníssimo e arrasador secador, eliminando por completo o incómodo dos pelinhos no colarinho engravatado. Aos cinquenta e tal, ir à barbearia – ao cabeleireiro – é já, obra do Tempo, uma terapia de relaxe.
(Da crónica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 07.AGO.2014).