A escola punha-se lá no fim da rua sem saída. Por onde dei as minhas primeiras e inconsequentes pedaladas na bicicleta de um primo então ali residente. Como se chamava a escola? Não sei. Talvez nada mais senão “a escola primária”. Nem mesmo recordo o nome da rua de que fixei apenas a quietude, o silêncio, o à-vontade com que nos deixavam brincar sem temer o trânsito automóvel. Essa a imagem de há quase 50 anos, em que o bife com batatas fritas era, invariavelmente, o almoço das terças-feiras.
Hoje a escola intitula-se (complicadamente…) EB1 Conde de S. Cosme. E a rua, mais completamente, do Conde de S. Cosme do Vale. Da qual é insigne professor o meu ex-colega de turma, nas Caldinhas, o Jorge Pimentel, velho e inesquecível Amigo. O magnífico autor de uma proeza inédita – convidar-me para ler um conto de minha autoria aos seus pupilos da turma Girassol.
É claro – assustei-me com a proposta. Eu nada sei de crianças. Nunca escrevi para elas. E o fantasma de uma turma toda dormindo a sono solto, ou alvejando-me com aviõezinhos de papel, tirou-me o pio, pintou expressivamente a imagem provável do meu desaire.
Ainda assim aceitei o repto. Ponderei. Li o que tinha para lhes ler e cronometrei a leitura. Dei conta do cerrado da minha escrita. Vacilei. E fui dizendo que sim.
Mais a mais, não guardava boas recordações dessa escola onde, pela circunstância de iniciar os meus estudos com professora privativa, necessitei fazer exame que me confirmasse assento na 2ª classe do então inaugurado Ninho dos Pequeninos… Soube depois, estive, vai não vai, para ser chumbado dado o meu teorema sobre a aritmética assente: 7x7=49, e não a 7, conforme tentei demonstrar…
(Santo Deus!, o que o tempo encerra de bizarros e apocalípticos acontecimentos, e a memória nos castiga por tão inusitadas originalidades…).
Enfim, escolhi o texto. E, maturando a sua densidade e o auditório que me aguardava, optei por contar a história em palavras de momento, reservando a leitura apenas para o ponto fulcral do enredo. O demais, convidei, fossem eles, os ouvintes, a desbravar através do exemplar já na posse da Escola. Assim a sua curiosidade os levasse a tal…
Foi uma experiência nova. Não para a miudagem mas aqui para o velhote que não recorda pela sua frente uma plateia tão exigente, difícil de satisfazer. Mesmo porque – infelizmente – nunca me foi habitual lidar com quem reclama tanto pedindo assim pouco. Já Cristo ensinava: deixai vir a mim as criancinhas, proeza ao alcance de quase nenhuns. Era a incontornável questão da acessibilidade do discurso, desta nossa triste tendência para não saber falar simples.
Não obstante, sou capaz de crer este exame correu melhor do que aqueleloutro em que, afinal, 7x7 eram mesmo 49. Por se dar o caso de eles e elas, todos entre os 8 e os 9 anos, prodigalizarem à despedida comentários espertos e enternecedores. Sou-lhes muito obrigado, tal como ao Amigo Pimentel. Quanto a mim – nunca a idade seja impeditiva de personalizar a novidade e de desbravar o desconhecido.
Pelo caminho, entretanto, no silêncio da minha observação, ficaram instantemente as comparações. Entre a austeridade da minha meninice, corredores sombrios, soalhos a ranger, a uniformidade das batas e a segregação das aulas, rapazes para uma banda, raparigas para a outra. Quão mudou o Ensino! Quão ensombradas eram aquelas paredes e distantes e inexpressivos os docentes!
Agora…
Agora, contra muito do que eu julgara, há empenho, boa-disposição, colorido e criatividade. Abrangência. A rua de outrora, sem saída, escapa-se hoje pela jovialidade dos dias escolares. Entre os professores, nos mais veteranos, alguns meus velhos companheiros de liceu…
Vim embora de alma cheia. Mesmo porque vencido ficara o meu temor de confusão com o Avô Cantigas e, por inerência, com o Presidente da República. Algo que muito desagradaria a este idoso monárquico de alma e coração…
(Da rúbrica De Torna Viagem, no semanário famalicense Cidade Hoje de 20.MAR.2014)