Ninguém gosta de dormir ao relento
Chegaram tarde, já o jantar ia no fim. Comeu a sua ração, enquanto o dono comia a dele, e deixou-se estar por ali. Era a secreta esperança, a calada vontade de pernoitar dentro, no quarto dele, do dono, longe do frio da madrugada, no calor da sua companhia.
Mas não. As regras eram claras em mandá-la, logo após, para a escuridão do canil. Onde se acomodavam já os seus semelhantes. E a Senhora da casa explicou isto tudo num tom de voz onde se adivinhava sequer tolerar um "mas".
Foi de carro, o dono e o amigo levaram-na, o amigo explicando todos os detalhes do recém-construído canil, o dono como que pedindo desculpa, com meiguices e mais ração, um prolongado «até amanhã».
Talvez nem uma hora depois, o dono em sítio onde obtivesse rede telefónica para as derradeiras amabilidades nocturnas, ouviu um galopezinho na gravilha do pátio, um arfar canino. E um olhar ao mesmo tempo aflito e feliz por o encontrar. Era ela!
Como teria chegado ali, como conseguira, um canil novo e bem estruturado, com dois metros de altura... Enfim, não era hora de a conduzir para lá novamente. A Senhora da casa já recolhera, o marido fechou os olhos... e o objectivo foi cumprido - dormiu aos pés da cama do dono.
No dia seguinte, depois da caçada, foi quando se tratou de tirar tudo a limpo. Evidentemente! Duas barrras da divisória em verguinha dobradas para cima... Fora por ali que ela se escapulira! E, à hora regulamentar, sempre com o seu pedaço de ração, com quem é presenteado com um chocolate, o dono uma vez mais a levou ao canil. Desta feita a pé, e escolhendo uma divisória sem buracos, bem firme e segura.
- Adeus, rapariga! Dorme bem, espera-nos amanhã uma longa viagem...
Não andara cem metros no regresso à herdade, o mesmo tropel certinho atrás nas suas costas... era ela, novamente!
Já não cuidou de saber como fora. Resignou-se. E deixou-a vir consigo, apenas com a recomendação de que se deixasse estar pelo pátio, evitasse o interior e a Senhora da casa.
Assim foi até à hora da generalizada retirada para os quartos. Abriu então a porta
- Anda! Vamos...
e voltou a oferecer-lhe o tapete junto à cama, que lhe aprouvesse o sono.
Apenas de manhã a Senhora da casa deu pela marosca. Não se exprimiu entusiasmadamente, mas também não ralhou...