Santa Clara
Não houve nunca o tempo das apetecíveis correrias ao longo dos infindos corredores que se adivinham naquele gigante. Nem nos idos das religiosas, aproveitando os segredos da noite para se atirarem das janelas, apontadas a carros de bois de fieis caseiros e à liberdade da espera dos seus amados. Eram apenas histórias guardadas nos séculos que antecederam a casa correcional, os rapazes ali encarcerados e a sua habilidade em encadernar, barato e bem, os livros merecedores desses desvelos em pele e ferros que enchiam a alma das bibliotecas.
Somente nos templos vizinhos, entre as estátuas jacentes dos sepulcros e outros bocados de passado, se repetiam os passeios até ao miradouro sobre o Ave com horizonte até ao mar. Há anos que já lá vão.
Da derradeira vez assim foi. Com um amigo, veraneante vilacondense de sempre. A memória transparente do rio, dos jaquinzinhos pescados do jardim, da velocidade no esqui, as lanchas, os botes, um trânsito automóvel exíguo - tudo já não era senão essa vaga recordação. Vila do Conde, outra atropelada por uma modernidade a quem ninguém ensinou a buzinar. Por tanto, a romagem que cada subida a Santa Clara traduzia exigia a qualidade dos romeiros. Daquele alto, quantos apelos aflitos da praia da nossa infância não ouviamos e acompanhávamos!
Depois o mosteiro entrou em manifesta ruina. A Vila (quero dizer: a cidade) insurgiu-se. Organizou-se. E posta em formação de ataque, investiu sobre aquela pouca-vergonha. Anteontem sairam de lá 54 toneladas de lixo vário.
Resta um destino a dar a Santa Clara. Um hotel? Algum malabarismo oficial? Um museu?
Não faço ideia. Gostaria apenas de, assim como não pude na meninice, ser agora livre de calcorrear aqueles corredores, as celas, sentir em cada uma o sofrimento de cada freira, sobretudo dessas mais formosas, vítimas de uma devoção que não era a sua. Ainda haverá por aí muitos carros de bois a transportá-las para melhores destinos...