Era uma ruina, apenas. Nos idos em que, a pé ou de bicicleta, calcorreava seis quilómetros e enchia a alma e trazia qualquer coisa no cacifo daquelas águas límpidas e sumarentas de bogas e trutas. Que saudades! Estou a vê-las, as pintalgadas, palmudas de mão ampla, depois da mais silenciosa aproximação, hirtas e enormes, postas de cabeça contra a correnteza. Uma e outra e outra, aqui e mais vinte metros ali. Chegando o tempo das rolas, revejo bem a estranha sensação suscitada por um miúdo, cartucheira à cinta, espingarda a tiracolo, pedalando estrada fora, seis quilómetros pareciam nada, e Nine fogueado nas margens do rio Este até cansar. Vai lá uma vida que tanto e tão longe viveu depois, memorialista, sempre na mira do regresso.
Entretanto, a sujidade principiou a brotar em Braga e as trutas foi um ar que se lhes deu. Tantas vezes passei a belíssima ponte românica, já de automóvel, parando invariavelmente a beber recordações. Avinagradas na sujidade do leito fluvial, turvo, moribundo, capaz apenas de alguma enguia, umas fedorentas pardelhas. A azenha, ruína onde chegou a funcionar um matadouro clandestino (!), transfigurara-se em habitação à sombra da qual ainda acreditei na pesca e invejei o proprietário. Relembro peixinhos, desses que resistem a todos os venenos, relembro o fim inevitável das galinhas-de-água e das rolas do início da época venatória. Eram sucessivos setembros de desilusão.
E foi no ano transacto que voltei à carga, a matar dores do Passado, a velha ponte imperturbável, nos muitos séculos da sua existência. A azenha era agora um restaurante, uma esplanada, o ranger das madeiras do soalho sobre a massa hidraulica. E as águas haviam recuperado claridade, o peixe entusiasmava, visto cá de cima, rabiando entre a vegetação aquática. Preso à margem, um botezinho dava o toque da ressurreição, era uma festa, uma promessa, um chamariz. Um breve trecho de felicidade.
Assim combinámos, tu e eu, um jantar na velha azenha de Nine. Assim invocámos os passos mais elegantes da nossa juventude e rematámos a noite com beijos que prometiam a continuação do Amanhã. Assim acreditei no determinismo e em inauditas regras do cosmos e nessa convicção vivi tantos meses.
Ainda recentemente voltámos. Outra vez rodeados de águas pardas – oh desilusão! – em pescaria de crianças. Mas a azenha estava lá, a sua varanda sobre o rio e uma comidinha ligeira – uns camarões, outros petiscos para picar – a imprescindível garrafa de verde branco fresquinho. Falaram-nos em lontras, esquivas, sorrateiras, rente às margens, e eu até quis acreditar, tanto quanto em outras miragens ao som das velas. Numa ingenuidade de adolescente, a espingarda e a cana esquecidas, todas as manhas também, numa espécie de ansia ante a primeira experiência. A sonhar acordado, dormindo apenas para a realidade…
Afinal, nada travara o caminhar dos anos. O que antes nunca chegara a ser jamais seria, senão apenas em momentos fugazes e escondidos de toda a gente…
Mas aproveitem, caríssimos famalicenses. Vão à azenha velha de Nine e sonhem, recordem, sorriam um pouco também. Talvez escutando somente o calado deslizar das águas do Este.
(Publicado no semanário Cidade de Hoje, de V. N. de Famalicão, ed. de 18.JUL.2013, na crónica De Torna Viagem)