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Em redor do enorme terreiro da igreja eram as casas dos principais: ricos lavradores de uma lavoura que se estendia a perder de vista, mais o capitão da Milicia, o cónego letradíssimo, a prosápia envinagrada de quem se jurava Cavaleiro de Cristo, embora se lhe desconhecesse montada ou pecúlio capaz de um jeito nas telhas quebradas do seu telhado...
E um dia chegou ele, trinta anos após a partida, já um desconhecido, quem adivinharia naquele corpo cansado e torrado do sol, de patilhas grisalhas e casaca a suavizar-lhe a marreca, quem descobriria o mancebo que se fora de arca às costas (quantos teriam morrido, entretanto?) cismando brasis, colossais fortunas só em ecos vislumbradas, trabalho, aventura, o mundo por sua conta, o regresso, enfim, o opulento regresso desvastador da miséria dos seus?
No local preciso três décadas sonhado construiu o seu palacete ombreando em altura com a torre sineira da igreja lá em cima. Partira já, é claro, o cónego, levando no encalço o capitão, o cavaleiro apeado, os poderosos lavradores da sua infância. Conquanto de todos ficasse descendência num perpétuo rondar o Tempo à espera de fortuna contratada. De um apetecível dote, isto é. Aproximando-se, sornamente, escutando as batidas na pedra em que tão formidáveis paredes se erguiam.
Não casara, não fora pai, ninguém trouxera consigo. Mas uma sobrinha, uma afilhada, uma protegida, sempre lhe assistiriam na velhice e abocanhariam o naco mais gordo do ouro do seu segredo. Senão, para quê o palacete, o volume enorme onde talvez coubesse, inconfortável, o seu orgulho?
Sucede que a sua gente desaparecera. Levada pela doença, pelo infortúnio, pelas águas turbulentas do Ave, em indizíveis desgraças. Ou partira, também, rumando ignotos destinos. Na insana obsessão dos planos irrealizáveis, ainda assim rasgara os alicerces do casarão todas as noites sonhado. Já os olhos se reviravam de loucura e de outros males, sequelas dos ares tropicais em que suara as saudades do seu Minho.
Foi somente o espaço de concluir a portentosa edificação. O seu mausoléu, diziam depois os vizinhos, na triste danação face à inevitável posse da sua riqueza pelo Estado.
Era quando Santiago de Bougado ia ganhando em silêncio a paz que o lugarejo da Trofa perdia no banzé da proximidade da estrada para o Porto.
Decorreram vidas, gerações delas. O palacete está lá, onde sempre esteve. O mais, ignora-se. Talvez o regresso, o subir dos andares e o escutar do vento ajudem a esclarecer o que foi o que é agora (felizmente) um espaço de cultura da Autarquia.