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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Aconteceu assim

João-Afonso Machado, 11.12.12

Não queiras dizer que não aconteceu. Acrescenta apenas, baixinho, foi há muito tempo. Pois foi. Entrava eu nos 18 anos e tu quase a despedir-te deles. Mulher feita, fresquinha, a vila inteira seguindo-te os passos bem lançados, apesar de ainda sem rumo defenido. Tudo podia ocorrer. Já só faltava fechar a última cavilha da minha velha mala de viagem. Viviamos a iminência do nunca mais.

Não fora o acaso daquela tarde na pastelaria! Essa mesma onde os mais exuberantes entusiastas da tua beleza te cercavam a salmodiar banalidades. E onde eu nem costumava entrar, mais levado para os bilhares ou talvez para longe de tão intransponível concorrência.

Assim pensava, assim continuaria a pensar, não surgisse essa tarde, esses breves minutos de ninguém mais e um olhar, um sorriso, dois passos e o cigarro que me pediste e eu não te dei porque detestavas tabaco sem filtro, mas pronto, de repente senti um olhar a puxar-me para a cadeira em frente, era o teu, carregado de curiosidade, mesmo de interesse, interesseiro, a Universidade vinha aí, como ia ser, como não ia, insisto, as tuas pernas, as mais lindas da vila, hesitavam ainda no rumo a seguir.

E assim foram todas as horas até ser noite nesse longínquo solstício de verão, de volta de uma cerveja e da poesia do Jim Morrison com que principiei a chamar-te para um mundo diferente, sem calças de boca-de-sino nem Barry White.

O mais não interessa. Nada aconteceu para além da pastelaria depois encerrada ao público, justamente porque nela só cabia toda a nossa história e...

(Não!, não me interrompas garantindo-me gostavas imenso tivesse sido assim. Foi. Quando, como e onde, não sei. Mas foi.)

 

 

Sentidamente

João-Afonso Machado, 11.12.12

O desabafo de uma mãe - anoitecendo, é à luz da vela ou de um "foco" e a rezar para que a comida não se estrague no frigorífico; a notícia sobre o que já não se consegue pagar de consumo de electricidade entre as famílias portuguesas, assusta, choca, dá muito a pensar. A miséria é sempre mais perceptivel através de situações concretas, rostos expressivos e identificáveis, não chega saber-se que - não se sabe aonde - alguém sofre, passa privações, chora os seus males e os dos seus filhos.

Talvez haja mesmo algum orgulho em nos dizermos não mais perto de a quem nada falta do que não tão longe dos que tudo perderam. A desgraça, felizmente, não nos bateu à porta, mas privações desconhecidas em outros tempos já se sentem e por elas norteamos o quotidiano. Algo de absolutamente estranho às gentes do aparelho do Estado; algo, ao invés, a vir merecendo especial atenção das autarquias, e essa, decerto, a mais agradável surpresa ao fundo do longo túnel à nossa frente.

Não se trata de criticar esta ou aquela opção política; somente a aparência, o status, o automóvel portentoso, a regaliazinha.

Não sei porque ocorre, muito ou pouco possa ser feito, a produção literária ou a criação de cães surgem tão cheias de oportunidade e pertinência. Possivelmente porque estes são, sempre foram, os maiores amigos do homem; e aquela uma espécie de confessionário, ou uma manifestação contra ou a favor do que quer não reclame o ar cheio de pedras da calçada.