Das "Memórias de um Átomo"
O marçano José Povinho já não suportava mais. Num repente, tudo lhe parecia fugir debaixo dos pés. Tudo! - a assistência médica, o apoio à educação escolar dos pimpolhos, o comer da burra em que se deslocava e o seu e dos seus, sobretudo essa premência. Foi então que decidiu protestar.
Mas perante quem? A quem pedir contas, responsabilizar? Aconselhou-o o compadre, homem conhecedor das letras, leitor dos jornais.
- Vá o compadre falar com o Sr. Estado Social [ES]. Somente S. Ex.cia o informará e por si tudo fará.
Seguindo angustiadamente a recomendação, o José Povinho foi. Eram 10 da manhã quando chegou.
E pouco faltava para as 10 da noite quando regressou. Sem lograr ser recebido, maldito dia, perdido dia nas curvas de uma interminável fila onde esperava toda a sorte de padecentes, parentes seus.
José Povinho porfiou. À terceira tentativa, quando decidiu nem ir à cama, ouviu entusiasmado o seu nome, a sua oportunidade. Sua Ex.cia o ES ia enfim recebê-lo. Soavam as dez badaladas no relógio da paroquial igreja.
Sem tardança desbobinou os seus males. Ouviu-o sem interromper o grande bonzo ES. Sem embargo do encomiástico palavrório dirigido ao filho dilecto, o Serviço Nacional de Saúde [SNS], e ao Ensino Público que, todos sabemos, é a escola de todos nós. A toda a sorte de apoios sociais da sua tradição de ES.
Foi um momento de acalorada esperança:
- Então, Ex.cia, poderei contar com o Centro de Saúde que a televisão disse ia ser fechado? E com o abono de família, o subsídio, a bolsa de estudo para o moço mais velho?
- Calma, calma, calma... A crise, sabe, a crise, furou-nos os cofres. Temos de garantir o salvador, o meu SNS. Para bem de todos nós..., perdão de todos vós. Por isso, para já...
- Ex.cia! A doença da minha patroa, o pão para os meus filhos não esperam por amanhã. O que devo fazer, Ex.cia?
O filantropo ES embatucou. E pigarreou. E somente alvitrou:
- Olhe, sendo assim... dirija-se a essa senhora, a Isabel Jonet, do Banco Alimentar...
- ???
- A Isabel Jonet. Uma ricaça com a mania de que vocês são todos pobres. Aproveite. Pelo menos a sopinha para os seus garotos não faltará.
E já na despedida, quando o José Povinho, cabisbaixo, entendera haver de tocar a outro batente:
- Oh Sr. Povinho, não esqueça, isto é off record...
- É o quê?...
- ... off record. Quero dizer: eu nada disse. O nosso SNS é que é a democracia e sem ele adeus... Precisamos é de nos manter unidos contra os demoníacos neo-liberais.
- ?!?!?!.
(Com a devida anuência do meu Amigo J. da Ega, a quem mui grato sou.)