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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Memórias académicas (II)

João-Afonso Machado, 25.09.12

Creio que a conheci num jantar de há milénios no velho "Fagundes", com as suas salas pequenas, cada grupo de comensais em cada uma delas, longas a inesquecíveis noites de Leça da Palmeira, até que o sinistro clarão de um incêndio sinalizou a morte desse nosso refúgio e dos seus bifes. Talvez já num tempo de despedida, os prados académicos haviam entrado em pousio, eram horas de partir para outros lugares da vida...

Como quer que seja, conheci-a então. Alguém festejava o aniversário. E, feitas as apresentações, calhou de nos sentarmos lado a lado. E, sem querer, dei comigo a esbugalhar o olhar contra as suas pernas, tal a escassez da saia. Uma saia de malha, recordo bem, por efeitos da cadeira quase se refugiando nas nádegas da proprietária - a quem houve de explicar que não, eu não era maluco nem perigoso, somente um provinciano pouco rodado.

Essa noite foi o início de uma grande amizade, ainda agora bem mantida. E, no remate dos estudos (a minha Amiga concluiu-os um ano antes e casou sem esperar pelo derradeiro exame), lá lhe deixei uma quadra no seu Livro de Curso:

 

«Já doutora, já casada,

ai que situação a minha!

Pra que chegue a mesada

uso a saia poupadinha».

 

Evidentemente, ela exerceu o seu direito de resposta, quando também lhe pedi uns versos para o meu:

 

«Generoso como ele é,

parece que lhe querem mal:

Pindela apenas, porquê?

Chamem-no; mas no plural».

 

Querida R.! Ainda ontem nos encontrámos, nós e a sua constante preocupação acerca da minha sanidade. Em momento, infelizmente, menos alegre e descontraído.

 

 

 

 

 

Em Castelões, para além do tempo

João-Afonso Machado, 25.09.12

«A conversa ameaçava morrer no horizonte, nessa miragem que se esfumara quase chegando à capelinha de Santo António. Mas a saborosa recordação da Joana, a simplicidade do seu traje e o seu asseio, o seu perfume a entranhar-se-me na alma, impunham uma ausência obrigatóriamente temporária. Ela voltaria, jamais findariam os amanhãs. O lavrador quedou-se apoiado no cabo da enxada e veio com outra novidade: de entre todos os admiradores, o mais desassossegado sempre seria o "Sr. Visconde".

E pôs a vista no lado de lá da estrada, como se, ao esticar o percoço, soerguendo as sobrancelhas, rompesse o silêncio e os mistérios que se acolhiam por trás da devesa. Era aquela a residência do fidalgo.

Entrava-se por um portão monumental, brasonado. O edifício, de linhas simples, a dispensar as escadarias, de que tanto se ufanam os solares minhotos, e o trabalho dos canteiros nas janelas, mantinha, ainda assim, alguma grandiosidade, a força inquebrantável do granito. Quis  parecer-me acolhedora, talvez aquecida pelos armários com livros, o Visconde era engenheiro, era poeta de nomeada. E andara por África, combatendo as tribos rebeldes de Moçambique, alcançara a India em complexas missões ferroviárias. Estava ali uma vida longa que produziria uma longuíssima biografia.

Junto à outra face da casa, avantajando-se a ela, a cameleira gigantesca ponteada de vermelho, de branco, de rosa, aqui e ali... Eram esses trabalhos de paciência, as enxertias, a imaginação dos orientais, que o Visconde, certamente nas décadas da sua juventude, trouxera em vasos para Castelões. Assim como o espesso, impenetrável, canavial de bambu, já na extrema oposta da propriedade, subindo a pique a lancetar as nuvens. Tudo seria para o vate as principais recordações da guerra. As suas mais altas condecorações, talvez.

Estranhamente, quer do interior da morada, quer do logradouro, quer mesmo da várzea circundante não escapava um som, um ai! que fosse. E vivalma se movia no considerável espaço limitado pela devesa».

 

(Vd. Linda como o sol!, in Contos do Tempo, ed. DG Edições, 2008)