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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

De antes dos telemóveis

João-Afonso Machado, 31.07.12

Estou a vê-lo, mesmo sem o conhecer, no entusiasmo dos seus vinte anitos, mais não seriam. Em Lisboa, nos finais de 70, início de férias. Com uma novidade espantosa, gira até mais não, morenaça nortenha dada à costa, ali na Capital, nem ele conseguia perceber porquê, tal a excitação. E que interessava o resto?, além da sua presença, a franjinha a cobrir-lhe a testa, a expressão entre o tímido e o maroto, a blusa, as calças de boca-de-sino, as argolas nas orelhas, tudo a condizer, reluzentemente a condizer...

Mesmo sem o conhecer, estou a vê-lo de bolsa abonada. Acima da média. Já encartado. E decerto pimpão, travesso. A segunda metade das férias decorreram em memorável namoro com a recém-chegada. Saboreando uma paixão imensa, a palavra "casamento" a fugir-lhe constantemente boca fora, à mistura com planos infindos de viagens, visitas, cartas diárias, o telefonema a desoras, quando em casa todos dormissem, até o contador das chamadas...

Estou a vê-lo, mesmo sem o conhecer, no doloroso momento da despedida, aquela estranha sensação de ser ele o único saudoso, a desesperada tentativa de lhe arrancar uma promessa - voltas?, esperas por mim?, não me esqueces? E a torrente de planos a invadir-lhe a cabeça, encontraria quem lhe emprestasse um carro, far-se-ia à estrada, iria visitá-la...

Mesmo sem o conhecer, estou a vê-lo sofrer dias e dias, semanas, convencendo a tia a emprestar-lhe o Mini - Por amor de Deus, Tia, por favor! - Mas que diabo vais tu fazer ao Norte, que loucura é essa? E o silêncio a que se obrigava, a mentira com que se justificava, os tostões que ia juntando para a gasolina, para a estadia, para que nada lhe faltasse a ela, princesa, nem o jantar, nem a boite, nem o anel, pois claro. E tudo na maior surpresa com que idealizara presenteá-la.

Estou a vê-lo, mesmo sem o conhecer, voando pelo mapa acima, as escalas forçadas no trânsito pelo centro de cidades e vilas, nesse tempo ainda longíquo de auto-estradas. Com que impaciência, a que velocidade, tal o ardor em que o estou a ver, mesmo sem o conhecer!

E à chegada à terra dela, enfim, a frouxa recepção, a forma sequer embaraçada como lhe explicou que não, era já Setembro, tinham sido as férias, sobrara apenas a amizade. Estou a vê-lo, mesmo sem o conhecer, as lágrimas rolando cara abaixo, a tristeza e a humilhação no regresso, o Mini esfolando-se todo nessa estrada agora mil vezes maldita.

Estou a vê-lo, mesmo sem o conhecer. Como se o conhecesse - tão bem! - mesmo sem o ver.

 

 

Um restinho de política, antes das férias

João-Afonso Machado, 30.07.12

Há pouco mais de um ano, o PS desenhou a sua estratégia política: Sócrates inscrever-se-ia na Sorbonne, após uma mais do que certa derrota eleitoral, e Passos Coelho que se aguentasse à bronca com os efeitos das imposições da Troika sobre nós todos, desgraçados portugueses. E depois...

... E depois ( que se lixe o País, importantes são o voto e o Poder...) o interregno não seria grande, muito menos doloroso. Não tinha foros de travessia no deserto, apenas de um passeio se trataria, até ao Algarve por Canal Caveira, sem pagar portagens. Seguro conduziria - seguramente, prudentemente - sem se exceder na velocidade: gozando a paisagem.

Ontem mesmo tivemos sinais de que assim o PS congeminou o seu regresso aos paparicos da partidocracia. Primeiramente com o inopinado surgimento de António Costa na televisão, afirmando a não impossibilidade de se candidatar a 1º Ministro. Assim a modos de quem deixa o seu cartão de visita (dobradinho no canto, é claro). Depois, com a antevisão de um fracasso PSD nas próximas Autárquicas, aconselhando a Passos Coelho não arriscar o concurso a mais outro mandato governamental - na dominical análise do Prof. Rebelo de Sousa que - muito bem - veio desdramatizar o celebrado "que se lixem as eleições".

Porque que "se lixem" mesmo. Era dá-las de bandeja à Esquerda. Se, depois disso, continuasse a haver devotos dos socialistas e dos comunistas, então sim, seria legítima a conclusão que nada há a fazer deste País.

 

"Margem do nunca mais"

João-Afonso Machado, 29.07.12

Há nesta margem

o sentido do nunca mais

e dos impenetráveis caminhos,

obscura viagem onde se chega jamais.

 

São os fundos, remoinhos,

outros mundos, falsos remansos

da alma ferida a cada investida,

rocha polida, sem arestas,

tantos os recuos e avanços.

 

Tapumes, sonhadas frestas

afinal miragem,

outra e outra, sempre iguais,

 

nesta margem do nunca mais.

 

 

A ressurreição do concelho (e do Reino)

João-Afonso Machado, 29.07.12

Sente-se no ar a insistência do mistério. Ladrão? Assassino? Guerrilheiro? Justiceiro ou injustiçado? E a terra fechada no seu silêncio obstinado, a boca tão fechada quantas as muitas portas dos que partiram, emigraram, para algum lado foram, costas voltadas à História. Até o pelourinho, símbolo do antigo concelho, mais um morto à régua e ao esquadro, até o pelourinho não esconde a mutilação, a cabeça escavacada.

Midões, de onde - para a fantasia ou para a realidade - surgiu em outra eras o João Brandão. Entre matos e serras e o eco das clavinas e dos bacamartes, mil vezes ampliado pelos serões à lareira, histórias de arrepiar, criancinhas crescendo sob o espectro terrivel do implacável João Brandão de Midões. Assim há um perder a conta de gerações.

E tão amena localidade! Quase deserta, como é de bom tom no nosso Interior, e de melhor proveito para quem puder e souber. São já alguns os amigos que por ali adquiriram e restauraram memoráveis paredes. Ainda há para muitos mais. A ideia é recuperar o concelho, proclamar a Monarquia e realistar o João Brandão - de arma aperrada na entrada da povoação, de tocaia aos patos-bravos.

 

Da Lenda à História

João-Afonso Machado, 27.07.12

Pelayo, o primeiro rei das Astúrias, rodeado por todos os dias de hoje, bronze que perdura, a cruz da Reconquista bem erguida... - Há muito de lenda, a realidade pouco foi do que se conta - avisava a Senhora, no fatal relativismo dos literatos distraídos. Como se a sua escrita corresse então numa rópia de factos, rigores, precisões matemáticas...

Talvez rudes peles sebosas o cobrissem somente. Talvez a coroa ainda viesse a ser adorno. E, em vez da espada, talvez utilizasse qualquer bocado de ferro, contundente ou perfurante - mas afamado e temido entre picos e desfiladeiros do Reino inexpugnável. Lendário.

E transportado ao Presente num cortez, empolgante aparato de guerra. Porque não?

Os mitos também são a História. Serão mesmo as raízes que lhe dão consistência. Acautelemos as nossas, as de cada um. Que extraordinárias lendas contarão os vindouros a nosso respeito? Aqui em baixo, no planeta, que céu ou inferno viveremos na eternidade das palavras dos nossos sucessores?

 

De fora para dentro

João-Afonso Machado, 26.07.12

E um dia finalmente percebemos. Quando - decerto a medo - embarcamos e nos vemos ao longe, fora de nós, a nós próprios. Ao espelho, dirão os mais distraídos,  não se dando conta de que de imagens reais e palpáveis se trata.

São os nossos olhos, é a nossa voz, vendo e falando do exterior para dentro. Sobre a inconsistência da água, debaixo de todos os imponderáveis da surpresa. Encarando um bloco firme, o magma de que nos nasceu a alma. Talvez às vezes necessitando, então, de mãos firmes no cordame afeito às vagas do mar.

Mas daí ao enjoo vai toda a distância de uma tempestade. Tão salutar é avaliarmo-nos cá de baixo, contrariando o hábito do topo do monte, onde não raro nos confundimos de grandeza em excesso.

No regresso a terra, a consciência das marés e da erosão. E de que a todos é dado um tempo de resistência, também. O tempo de construção do Futuro.

 

Festival Arco Atlântico 2012

João-Afonso Machado, 26.07.12

Decorre, creio que com assinalável regularidade, nas Astúrias (Gijón) e nele tem presença a generalidade dos países com janela para o Atlântico.

É quase uma semana comemorativa da Arte, dos jogos, dos comeres e beberes, sem suma, da Cultura e das tradições populares. 

Este ano, o convite foi endereçado a Portugal. De cá partimos a Manuela Cavaco, fadista, e os seus músicos, Miguel  Monteiro e Pedro Marques; o Daniel Gouveia, editor e, também ele, um estudioso (com obra publicada) e cantador do fado; e a Ana Vidal, o José Pedro Katzenstein e eu, a apresentarmos os nossos livros mais recentes.

Acresce o programa de gastronomia e artesanato português, patente no Campo Valdez durante todo o certame.

Do muito mais que se poderia dizer, fica apenas uma nota: a boa disposição e a inexcedível hospitalidade dos asturienses. Para eles, a verdadeira Espanha - a única jamais conquistada pelos islamitas - é ali. A ideia é bonita, menos pelo que transporta do Passado do que por quanto projecta no Futuro.

 

Portugal recomeçou a arder

João-Afonso Machado, 19.07.12

Era preciso menos televisão e mais acção. Preventiva, combativa e repressiva, é claro. Nem todos terão vivido um incêndio às portas da casa. O susto das chamas a lavrar terreno, o calor que acresce ao calor natural, já de si extenuante, o medo, a sensação de impotência.

Quantos partilharam a angústia da destruição total? Do lar ardido, de uma vida consumida pelas labaredas, da fatalidade que não deixa alternativa à fuga, apenas à fuga mais o que caiba nos bolsos e nos sacos que as mãos comportem?

Quanta gente não presenciei chorando apavorada ante a sensação da miséria próxima, de um amanhã acordado somente em cinzas!

Para não variar, o País arde, uma vez mais. É assim, em cada vaga de calor. Há quantas décadas já?

Afoguem o fogo e os eufemismos. Os incêndios são obra da vontade humana. Facilitados, sem dúvida, pelo desleixo ou pelo caos urbanistico; mas sempre, e inquestionavelmente, resultado da vontade humana. Assente ela na motivação em que assentar.

Madeira, Algarve, Beira Interior... Mais o que virá enquanto não vier o frio!

In illo tempore participei armado em muitas vigílias nocturnas (porque será que o lume tende a atacar à noite?...) de matos. Disparei até, nessas circunstâncias. E gozei o resultado de a "brincadeira" não voltar a repetir-se.

Que isto seja lido não como um incentivo ao milicianismo popular. Somente, quem sofre os efeitos dos incêndios é, essencialmente, a nossa gente. O ser humano. E os desgraçados bombeiros são - heroicamente - um remedeio. Nunca percebi porque o Estado não dispõe de meios que evitem o seu sacrifício. Friso: o sacrifício das suas próprias vidas!

 

 

Premonições autárquicas

João-Afonso Machado, 17.07.12

Manhã a consultar um processo complicado no Tribunal de Gondomar. Muito calor (35º) e o cliente ao lado, compreensivamente ansioso. Realizada a função -  desculpe lá a excentricidade, mas já agora levarei umas fotografias do pouco que resta entre estes pináculos de betão... E peguei na máquina. Restava o edifício da Câmara Municipal, quase nada mais.

E o cliente, muito sério, já apaziguado, apontou - olhe, não perca a oportunidade, ei-lo que chega...

Olhei. Era o Major Valentim Loureiro, entrando por um portão lateral.

O carro, de uma gama apenas medianamente alta. Sem motorista. Nada tem a temer, o "Major Valentão". O Valentim da Liga futebolistíca, do "Apito Dourado", dos electrodomésticos a rodos, das grandes epopeias eleitorais, do seu celebérrimo rob de chambre. "Quantos são?! Quantos são?!" Impávido e sereno, em suma.

Isto está mais para autarcas do que para ministros - conclui. E fui à minha vida. Talvez Valentim Loureiro se deixe ainda tentar pelos trópicos e brilhe em Oeiras. E Isaltino Morais sinta saudades das suas raizes e se chegue a elas, ali por Gondomar. No fundo é tudo uma questão de robs de chambre: de boa flanela ou em seda natural... 

 

 

Anatomias da alma

João-Afonso Machado, 16.07.12

Recorda a ponte e a lição do silêncio. Quando afinal os fundos escuros e lodosos eram a cidade dos peixes. Recorda-a, escuta o deslizar das águas entre os choupos e salgueiros e o grande barbo não te passará despercebido. Nem a lontra ou a família de tourões no lamaçal das margens, brincando aos pés da tua quietude.

Lê a vida na suavidade dos rios. No colorido das aves. Tranquilamente, conhecendo quem te cerca e deslindando todas as confusões.

Enquanto não, sofrerás apenas a tua revolta. (O barbo era grande por demais... Onde tinhas a atenção?).

O tropel das palavras é nada. Não esqueças sílaba alguma e ouve sobretudo. Fala mais com os olhos. Descobrirás que o umbigo é autoritário, nunca introspectivo. O umbigo berra permanentemente, clamando por mesuras, elogios. Vive negando a liberdade do recato e transforma opiniões em sentenças condenatórias. Palra imenso, não se cala, o umbigo.

(Ao despedires-te da ponte, mesmo sem teres visto o grande barbo diante do teu nariz, ias de mão dada... - com o teu umbigo?)

 

 

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