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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O Austin Seven

João-Afonso Machado, 20.05.12

Lembro-me dele na berma da estrada, ali para a Trofa, meses a fio. Muitos, um inverno e outro, e talvez outro ainda. A boleia, o meio de transporte então disponível, nem sempre assegurava o expresso para o Porto e há-de ter sido numa dessas viagens mais demoradas, com paragem na berma até à retoma por outra alma caridosa, que eu soube o preço do ancião Austin Seven, qualquer coisa como 300 contos em moeda nacional, nossa e só nossa. Enfim, todo o dinheiro que eu nunca tivera ou sonhara ter no conjunto dos meus 20 anos de existência, cinco deles sempre à boleia, insisto, o único motor por mim possuido até muito mais tarde.

Por tudo, a regularidade com que me cruzava com o Austin Seven (sim, já depois da Trofa, quem seguisse para sul, talvez rente às terras da Maia) e aquele adeus de olhares fugidios, 300 contos aonde?, se nem conta bancária aberta, nem mealheiro, nem mesada, apenas uns trabalhitos, alguma crónica rabiscada para os jornais...

E um dia o velhinho Austin Seven desapareceu. Nunca descobri como e para onde. Já o esquecera, três décadas volvidas, quando ontem quase me esbarrei de espanto nele - só podia ser ele, diz-me o coração - rodeado de netos e bisnetos, muito engalanado e brilhante. Feliz, lavado de todo o pó que a estrada lhe lançara, definitivamente fora da Idade.

Triunfante sobre a Idade. Vale dizer, sobre todas as fraquezas, mesmo liberto do juizo dos memoriais. Apenas cativo da torrente com que me inundou de gosto e saudades.

 

 

Duas perguntas matinais

João-Afonso Machado, 20.05.12

Ele está lá e não larga o lugar, nas primeiras páginas dos jornais. Por uma mão cheia - ao que parece uma grande manápula - de ouro, Duarte Lima terá irremediavelmente dado cabo da sua vida.

Assisti ao seu regresso a casa, para onde o mandaram com uma trela presa ao pé da cama, em mais um "directo" televisivo. Essa, de resto, a primeira pergunta do dia: porquê esses "directos"? Será assim importante para os portugueses a confirmação imagética da prisão domiciliária de outro arguido de "colarinho branco"?

Ainda com a memória na dita reportagem e nos imensos 400 m2 do 11º andar em que se instalou o sonho de grandeza de Duarte Lima, o derradeiro porquê? da manhã: porquê, Duarte Lima? Talvez bastassem a música, os livros, a intervenção cívica. E, por preço assaz inferior, Mirandela. Situada a cota orográfica obviamente superior à do 11º andar, e inegavelmente mais próxima do Céu. Onde por muito menos se comem muito mais e melhores alheiras do que as do Gambrinus.

 

Sabes?

João-Afonso Machado, 18.05.12

Muito entre nós, aqui onde ninguém nos ouve, não ensurdeças quando te digo: solta os anos, deixa-os subir à superfície, uns atrás dos outros, todos eles.

Esses anos onde, ou eu ou tu, estivemos no planeta vizinho. Possivelmente eu... O facto é que precisas do tempo que já não temos para explicares como, porquê?, foi mesmo assim? Sabes ao que me refiro, há caminhos não trilháveis, sequer existentes. Invisiveis, mesmo para mim - admitindo ter sido quem esteve no tal planeta vizinho, coberto de breu e de mutismo.

Era matematicamente impossivel, e tu e a tua inteligência dos números ainda assim impuseram-se uma demonstração! Só pode ter sido muito mau, depois. Percebo, hoje é já mais suportável, mas, percebo também, não raro o turbilhão ergue-se novamente num apedrejar com palavras e com actos. Dificil escapar-lhe, alcançar um abrigo.

Devias estar atenta. Sem fugir ao Passado, antes encarando-o na frieza de quem resolve uma equação em que x, a incógnita, é tão-só o Futuro.

E se, no Presente, necessitares de um intervalo para descanso, lembra-te sempre que essa variável y há muito está solucionada nas mais pequenas - que são as mais saborosas - coisinhas da vida. Basta olhares em teu redor...

 

 

Cós

João-Afonso Machado, 17.05.12

 

«A povoação de Cós ainda hoje mantém a tranquilidade que o curso dos milénios jamais soube roubar-lhe. As colinas circundantes produzem o eco longínquo das embarcações fenícias contrariando o marulhar da ondulação, quando a lagoa da Pederneira se estendia território adentro. Aqui fundou uma colónia esse povo de comerciantes. E, em preguiçosa sucessão de eras e eras, repetem-se os segredos, menos antigos, das monjas do Mosteiro de Santa Maria, humildes e sacrificadas, a a lavarem na ribeira as fraldas e os hábitos dos frades de Alcobaça. Nas encruzilhadas da lenda e da realidade, algures onde tanto foi como podia ter sido.

(...)

Uma motoreta rompeu pela rua principal, tossicando do motor, tal a secura a queimar a garganta do condutor. É meio-dia. Não fora essa aparição, esqueciamos o nosso século, julgando-nos perdidos em Setecentos, entre a monda dos milheirais e o pastoreio dos rebanhos. Em Cós, com a bênção do omnipresente S. Bernardo».

 

(in De Uma Família de Mareantes, ed. DG Edições, 2010)

 

Jane Birkin

João-Afonso Machado, 17.05.12

A festa, pomposamente apelidada "baile", principiara depois do almoço e prolongou-se até à hora de jantar, com um intervalo para lanchar uns sumois e umas bolas-de-berlim. Os participantes eram doze, seis "eles" e seis "elas", meticulosamente escolhidos lá no liceu, de modo a que tudo corresse bem, ninguém ficasse aos papeis. E os sheiks foram-se sucedendo aos slows e os slows aos sheiks. Uma delícia, inesquecíveis Alzira, Filomena, Adélia, Esmeralda, Angélica e Laura!

Indo a função a meio, surgiu a irmã mais velha do nosso anfitreão. Muito desembaraçada, decerto muito viajada, passeava um single entre os dedos - tomem, é o "Je t'aime"... O "Je t' aime"!!! - gritou-se em frenesim e correria para o pick-up. O melhor slow do mundo, um obreiro de proezas amorosas, a Censura atrás dele, a irmã do anfitreão recomendando nada se comentasse lá fora, cuidadinho com a lingua...

Ouviu-se e dançou-se o "Je t' aime moi non plus" até ser noite. "Tu vas et tu viens entre mes reins et je te rejoin..." até à exaustão. Sempre entusiasmadamente, compenetradamente, apaixonadamente.

Nos idos de 1973. E o único verdadeiro problema foi aquela descuidadela do dia seguinte, a narrativa do baile e o pormenor excessivo dos slows dançados às escuras. - Às escuras?! - indignava-se a Mãe, ameaçando festas nunca mais, esses tremendos atentados ao pudor e à moral.

 

Jane Birkin veio ontem à Casa da Música do Porto e encheu a Sala Suggia com a sua voz ainda tão suave, tão de mulher. De mãos nos bolsos das calças passeou entre a assistência como há quatro décadas passeava a sua irreverência pelo mundo. Foi como se regredíssemos no tempo até aos saborosos frutos proibidos - sempre os mais apetecidos - desses anos em que, vendo bem as coisas, ficaram tantas asneiras por fazer. Asneiras de então, puerilidades de hoje.

Cantou o repertório de Serge Gainsbourgh. Mas deixou-nos sem o suspiradissimo "Je t' aime". Talvez porque desacompanhada da voz masculina. Só pode ter sido.

Ainda assim, se passar por Lisboa, vão lá ouvi-la. Vale a pena.

 

Ecos dos mareantes

João-Afonso Machado, 15.05.12

Tudo se transfigurou. Um mundo inteiro vindo no correr das décadas para junto do mar, deixando para trás a humildade de Nossa Senhora das Areias, a vetusta quietude da Pederneira. E o silêncio fez-se completamente ouvir onde já fora a sede desse antigo concelho dos coutos de Alcobaça.

Aí decifrei o mistério do Tempo. E dominei a arte de o dominar, com uma vara aguçada ao seu peito apontada. Na Pederneira, onde lhe impus um retrocesso sobre si mesmo. Até ao tempo dos meus antepassados mareantes, homens das embarcações e do vaivém ao longo da nossa costa, de quando os piratas eram iguais aos das histórias e lhes roubavam as cargas e as vidas.

Quantos baptismos, quantos casamentos, quantos óbitos, quanto riso, quanto choro, quanto gozo, quanto sofrimento, de que a igreja paroquial de Nossa Senhora das Areias foi testemunha, não circulam hoje ainda no meu sangue?

Viajando através das gerações até encontrar o Minho, o extremo desse percurso que aprendi a fazer em sentido oposto. Contra o vento, contra o Tempo. Alcançando a Pederneira, a sua imobilidade, a imobilidade do sol e das sombras.

Insondáveis segredos do acaso ou do Destino! Porque Deus quis.

 

 

Das "Memórias de um Átomo"

João-Afonso Machado, 14.05.12

J:\FOTOS\PORTUGAL - LINHA DO NORTE\LEZÍRIA\LEZIRI

Meu muito estimado Amigo:

Com a maior alegria e a consciência plena de um dever cumprido, venho comunicar-lhe a minha adesão ao MAGiA. Sim, a esse avassalador e futurista "Movimento Anti-Garraiada Académica". Em suma, à nobre causa da defesa dos explorados e oprimidos.

Perguntará o meu sempre inesquecível Amigo o que sucedeu entretanto.

Pois tão-somente isto: no pretérito domingo, indo eu a ares à Póvoa de Varzim, esbarrei em cheio em mais uma famigerada garraiada. O meu Amigo sabe do que falo: desses torpes espectáculos em que a estudantada, depois de não dormir os sete dias da Queima das Fitas, debalde tenta manipular umas promessas de toiros e se aleija e os incomoda porque estupidamente lhes oferece uma pança cheia de cerveja, em vez de um abdómen anestesiado por meia-dúzia de bagaços. Com o aviltante resultado dos arrotos e dos vómitos, da desistência ante essas já soberbas feras, assim incomodadas na sua puberdade.

Semelhante vergonha não escapou à imensa e digna sensibilidade do MAGiA. Vai daí o protesto. E aquela jovem - afinal, quem me converteu - trajando pijama e pinchando num colchão, sempre gritando "garraiadas são na cama!". Muitos a ouviram, comentou-a a Imprensa, caso alguém duvide desse momento de magia.

A mim, fez-se luz no espírito. A cama, na realidade, é o local exacto onde, embolados ou não, despontarão os cornos da vítima. Seja ao menos nessa macieza... Também por isso, que sítio melhor para receber a sanguinolenta bandarilha? Ou os cardumes de forcados e campinos atazanando a besta? Senão mesmo o cavalo e o cavaleiro?

Está aí, preclaríssimo Amigo, o amanhã das touradas e sucedâneos: na cama. Todos os bovinos para a cama! E já! Sem distinção de raça ou sexo, como ordena a sagrada Constituição da República.

Enfim, crerá o meu distinto Amigo quanto avançou a Civilização nessa memorável tarde da Póvoa de Varzim. E no pó em que os 4.000 tontos, presentes na praça de toiros, se viram subjugados pelos dez, agora onze, iluminados do MAGiA.

Orgulhosamente, pois, cheio de fé, patriota até às entranhas, me despeço, meu urbaníssimo Amigo, a quem, et nunc ad semper desejo

Saúde e Fraternidade!

Sempre seu

J. da Ega.

 

(Com a devida aquiescência do meu Amigo J. da Ega, a quem mui grato fico)

 

 

A 13 de Maio

João-Afonso Machado, 13.05.12

Desde ontem estão a chegar aos milhares. Algo por que a Esquerda modernaça viva as maiores angústias, literalmente a mais desagradável sensação de impotência. Como travar esses invejáveis fluxos humanos - ai tanto votozinho perdido essas estradas fora!... - todos os anos rumando Fátima?

De resto, os enfadonhos comentários sobre o primarismo das promessas - até esse argumento! - revelam-se cada vez mais descabelados. O grosso dos peregrinos deste "13 de Maio" não se fez ao caminho para pedir ou retribuir. Talvez sequer para agradecer. Apenas - e sobretudo - para se encontrarem consigo mesmos, através da mediação da Mãe de Cristo, uma presença constante no coração dos portugueses desde os primórdios da nossa História, em qualquer recanto desta multissecular Nação.

Vivi algumas vezes essa caminhada de uma semana em que do porquê do esforço e do incómodo das primeiras etapas se progride para a tranquilidade em marcha, até à visão grandiosa do santuário, à emoção que nos toma por inteiro, num apertadíssimo nó da garganta. Até ao dificil momento da despedida, apenas animado pelo propósito do regresso.

Há, realmente, sentimentos e situações que as palavras não explicam. Porque, cada vez mais, há dois mundos: um empenhado em destruir o outro por força da apostasia ou mesmo da troça, da calunia; e esse mesmo outro tão apenas absorto em descobrir, espiritualmente, os percursos da Verdade e da Felicidade, seja a própria, seja a de todos.

 

Segurem-me senão eu mato-os

João-Afonso Machado, 11.05.12

A imagem de António José Seguro - conforme a sua ameaça - conduzindo manifestações de rua contra o Governo faz sorrir. Ninguém acredita. O actual dirigente do PS não é homem para isso, seja por índole, seja porque não é tolo. Onde um António José Seguro de mangas arregaçadas, descamisado, Avenida da Liberdade abaixo, de megafone na mão? Onde um gesto mais brusco do que o seu eterno arquear de sobrancelhas?

Seguro não despe o fato como não larga o seu discurso redondo, carregado de palavras, excessivamente carregado de palavras, as quais, bem espremidas, significam apenas que os designios ou a lógica eleitoral o colocaram na Oposição. E, como tal... noblesse oblige.

Por isso a vacuidade das suas ameaças - se o Governo extinguir o SNS... - e o pouco limpo pano molhado com que pretenderá apagar todas as falhas e carências do sistema, principiando pela ausência de meios de custeio dos serviços supostamente da competência do Estado.

Assim vai Portugal. Será preciso esperar por uma hipotética vitória extremista (de Esquerda ou de Direita) na Grécia para - então, por efeito do arrasto, já extemporâneamente - chegarmos à conclusão de que a Política não é um jogo de xadrez partidário, mas o desempenho de um mandato conferido pelos cidadãos?

(Ou melhor: pelos contribuintes. Por todos quantos, com o seu dinheiro, sob o epíteto de impostos, pagam a factura das mordomias estatais.)

 

 

Com um lugar ao sol na História

João-Afonso Machado, 09.05.12

«No perigo é o meu lugar», disse D. Pedro V, em 1857, quando as epidemias de febre amarela e de cólera apavoravam Lisboa, a classe política fugia, em busca de ares menos contaminados, e o Rei se mantinha imperturbável nas suas visitas a «hospitais, consolando doentes, amparando viúvas» (nas palavras de Maria Filomena Mónica, autora de uma recente biografia sua).

O Esperançoso (esse o cognome d'El-Rei) veio algumas vezes ao Porto: em 1856, em 1860 e em 1861, para inaugurar as grandes exposições portuguesas na cidade realizadas e, na derradeira deslocação, também o Palácio de Cristal. Eram os tempos do cárcere de Camilo Castelo Branco, onde D. Pedro não esqueceu de o visitar nas duas últimas viagens.

Morreria ainda em 1861. Não sem que antes incentivasse o projecto de construção do Hospital Militar do Porto que, aliás, tem o seu nome. Um hospital «avançado» (assim o classifica o historiador portuense Helder Pacheco), inspirado nos de Lariboisière, em Paris, e de S. João de Bruxelas.

Ainda lá está, o Hospital. Ainda serve. E festeja agora os seus 150 anos de vida, tantos quantos vão desde o prematuro desaparecimento do seu "padroeiro".