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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Ocaso

João-Afonso Machado, 31.05.12

Fim de tarde, fim do mês, quase fim da estação. Paira no ar a excitação da mudança, apesar dos caprichos do deus-sol, tantos séculos depois das grandes civilizações andinas. Regorgita o Facebook de crentes, a peregrinação vai já no adro...

Faltam somente os Santos Populares. O intransitável das ruas e o barulho ensurdecedor. Assim o manjerico e o areal façam a felicidade das multidões. Guardarei ciosamente para mim a sardinha, o cabrito e o tinto. E toda a mescla de cores do poente, onde quer que ele me deslumbre e faça pose. De preferência, silenciosa e confidente.

Senão, não o retrato. Alguma vez na vida farei greve também.

 

Interpelação ao Ministério da Justiça (a primeira)

João-Afonso Machado, 30.05.12

Vão lá uns anos, os advogados eram oficiosamente nomeados para defender quase nada mais do que qualquer delinquente apanhado em flagrante, entre duas estadias na prisão. Com droga no bolso ou já empoleirado nas escadas da roubalheira. Situações tão evidentes que determinavam somente o apelo à boa e - desgraçadas vidas... - compreensiva justiça dos tribunais.

A sociedade - resumindo-se, afinal, num imenso egoísmo colectivo - não se apercebeu, entretanto, das profundas alterações verificadas no seu seio. O todo ignora os dramas das partes que o compõem. Concretamente, as muitas situações com relevância jurídica em que os interessados não dispõem de meios financeiros a consentir-lhes a tutela judicial dos seus direitos. E o recurso ao advogado oficioso assim extravasou o foro penal (e formal), alcançando agora o cível, o comercial, o familiar, o tributário... Trabalho a sério, para os advogados, envolvendo estudo e preparação, responsabilidades acrescidas, tempo e dedicação.

E tudo a troco de nada!

Porque o Estado não paga aos advogados que nomeia para patrocinarem os seus cidadãos. O Estado, dito "social", verdadeiramente o mais despudorado pirata.

É obvio, os necessitados não têm culpa alguma. E, que me conste, ainda os advogados não decidiram fazer greve às "oficiosas"...

Mas talvez resida aí a explicação para - utenti et abutenti - a recusa de informações por parte do "Instituto" que gere as finanças do Ministério da Justiça, quando abordado pelos advogados sem receberem os seus honorários há um, dois, anos.

E esse é um silêncio humilhante. Se nos tribunais do crime a confissão traduz arrependimento e assim vale como atenuante, porque não há o Ministério de Justiça fazer mea culpa, demonstrar boa-vontade ou, em alternativa, entender-se directamente com as pessoas que buscam os causídicos? Por medo ao eleitorado, constituido por essas mesmas pessoas? Ou porque a Senhora Ministra (por acaso, uma advogada) e o Bastonário da Ordem se zangaram?

Em qualquer caso - que temos nós a ver com isso?

 

 

"Bastião"

João-Afonso Machado, 28.05.12

Bastião dos sonhos, chamavam-te bastião,

quase tolo, quase aldrabão,

pelos dedos em que sentias o nevoeiro

contido em tua mão

 

não sabendo eles os medos

de quem aposta primeiro,

bolsos vazios de senso

como de dinheiro.

 

Mas quando a neblina dissipou

descobriram-te os segredos

quando tudo a realidade levou,

bastião dos sonhos,

deixando a nu os pesadelos.

 

(Riam-se agora a lê-los,

infindos, medonhos).

 

 

 

Há dois anos. Tão-somente?

João-Afonso Machado, 28.05.12

Era já Verão e o trajar condizente. Mas a gaita mantinha os mesmos acordes e o seu som trepava as escadas do túnel e alcançava o largo terreiro da Catedral. Como agora. Pairando no Tempo ao sabor dos mitos e do vagar das nossas origens celtas. Porque é isso mesmo: entre o baixio e a cumeada, algures onde tudo nos perguntamos, fica o lugar da ausência do rigor ciêntifico e a almofada da crença. Decerto não disponível a qualquer inteligência, pensando, é claro, nessas mais tolas, sempre esporeando a racionalidade até à exaustão. Quando se ignora a permanência do sonho, suave lufada de ar vindo do Passado e desejado - musculado - no olhar posto no Futuro.

Dois anos a tocar - se não mais - são todas as primaveras e outonos de uma vida em que o inverno não significa morrer. Quod demonstratum est.

(E se, realmente, S. Tiago, ou as suas ossadas, não chegaram à Peninsula? Que importa isso hoje?)

 

 

San Jacobo

João-Afonso Machado, 27.05.12

A excursão organizada pela Associação Comercial e Industrial de Barcelos (ACIB), composta de quatro magníficos autopullmans, partiu hoje do Largo da Feira, manhã cedinho, e eu com ela. Destino: Santiago de Compostela, até porque as excursões minhotas nunca se afastam muito dos lugares do Culto, com todas as concertinas e garrafões que possam ainda comportar. Para mim, além do passeio, tratava-se de um aconselhável reconhecimento visando um outro empreendimento já para breve. Na expectativa de que não chova então o que impiedosamente choveu hoje, a transtornar todo o programa de festas, obrigando os farneis e as ditas concertinas a recolherem, húmidos e roucas, ao Colégio La Salle e a abreviar o regresso, com mais um pedaço de bródio em Valença, num parque de romarias onde, justamente, o sol reapareceu.

Não obstante a negligência de San Jacobo, Compostela vale sempre a pena. As suas ruas e os seus becos, o seu granito e os seus galegos (no fundo, uns minhotos com um falar esquisito), a imponência da catedral e das cerimónias nela realizadas. Sobretudo isso. Evitando, como há-de ser, discutir os temas relacionados com a Espiritualidade, que considero do foro íntimo de cada um, a verdade está em ninguém se manifestar indiferente à majestade dos ritos. No curso dos quais, o Cardeal que presidiu à celebração deu as boas-vindas, em várias línguas, a todos os presentes, fossem eles cristãos ou crentes de outras religiões, fossem eles laicos, curiosos meramente. 

E essa é, muito elevadamente, a "boa nova" do mundo em que nasci, vivo e tenciono morrer. Ou melhor: adquirir passagem para o seguinte, em que não consta haja desemprego.

A receita da ACIB, obtidas com esta iniciativa, reverteu toda, entretanto, em favor das actividades da Liga contra o Cancro.

 

 

Porque hoje é sábado

João-Afonso Machado, 26.05.12

J:\FOTOS\V. N. FAMALICÃO\CIDADE E CONCELHO\ANTIGO

Já então faltávamos às aulas matinais. O Gabriel por ficar preso nas suas águas-furtadas - o zigurate, como ele dizia - observando os astros e de ouvidos colados ao Espaço 3P. Eu, mais por preguiça, não tanto por noitadas musicais, à míngua de aparelhagem e mesmo de electricidade em casa.

Mas em 1974 os Doors tocavam até à rouquidão total das pilhas do meu pick-up. Assim como os Jethro Tull, Crosby, Stills & Nash, Ten Years After, Emerson, Lake & Palmer... Discos que os primos traziam de longe, de acordo com uma lista razoavelmente actualizada, obra do Gabriel, produto da sua "frequência modelada" e do vanguardista Espaço 3P.

Não creio houvessem mais, lá no Liceu. Mais que só usassem botas, camisolões, a clássica calça de ganga ou bombazine. E o cabelo a tapar as orelhas, talvez, mas sem entrar em tolices pelos ombros abaixo. Não, o resto da malta pendurava-se em sapatões inauditos, escondidos em calças que lembravam reposteiros, e, em vez de colarinhos, tinham asas duplas: as da camisa e as do blazer de quadrados espaventosos. A lembrar o George McCrae e os Temptations, o James Brown, Marvin Gaye. E vá lá saber-se porque não me sai agora da cabeça o Sugar Baby Love das Rubettes... 

Mal sabiamos, nem um ano após, a rapaziada, posssuida de Marx, de Lenine, de Mao, adoptava generalizadamente as botas de lona, os jeans novos a armar ao coçado.

O Gabriel e a sua familia instalaram-se na Galiza. Por cá fiquei, receptador de fotografias dos grandiosos funerais de Franco, escrupulosamente enfiados nos paineis escolares de informação. Um escândalo! Um risco, até, faltavam ainda uns meses para o País recuperar algum juízo.

Porque hoje é sábado e passei em frente do nosso velho Liceu, ocorreu-me tudo isto. Ainda nos encontrámos na Faculdade, eu e o Gabriel, mas ele depois enveredou pelo Grego e pelo Latim e eu deixei-me estar cá em baixo, com os pés assentes na terra. Hoje é padre e ri-se complacente sempre que encontra este seu amigo, o pecador profissional de sempre.

 

 

Regimentalidades

João-Afonso Machado, 25.05.12

Em plena década de 80 do passado século, frequentei, durante 14 semanas, um "curso" de "Jovens Empresários Agrícolas" que me habilitou à candidatura de um apoio financeiro visando a instalação de um plantio de kiwis. O qual, por acaso, continua lá no sítio, em vez de se ter transformado, como a abóbora da Gata Borralheira, em algum automóvel da gama média...

O facto é que no dito "curso", vivido no Sameiro (Braga) e na Apúlia, os participantes dormiam dois em cada quarto, se calhar por contenção de custos, propaladamente para contrariar o espírito individualista dos minhotos e abrir as portas ao associativismo e ao cooperativismo. Essa a explicação de tão indigesta comunhão.

Talvez compreendam: o meu parceiro nunca deixou de manifestar a sua incompreensão face aos meus hábitos de leitura antes de adormecer e ao acordar, pela alvorada; no que me toca, espantavam-me as tainadas de salpicão e vinho imediatamente antes de fechar a luz e ferrar o galho. Sem falar já no duche matinal, um comportamento que eu, nessa idade, desconhecia ser não pavloviano...

Os anos correram e cada um seguiu o seu rumo. Recentemente encontrei um dos comparsas desse "curso". Em cima de um tractor, vendia melões na borda da estrada. Foi um grande abraço amigo e a conversa óbvia na circunstância: que é feito de cada um?

Todos (quase todos) tinham mudado de vida. Trocado a lavoura pelo emprego. Muitos (muitissimos) roçavam os males da penúria. Valia-lhes a nossa resistência no desenrascanso.

Eu só quero todo o bem, o melhor, para os meus conterrâneos, colegas e amigos. Essa a principal realidade. A seguinte é uma constatação: esta tropa que legisla nunca será capaz de compreender o país real. E lava as mãos, qual Pilatos, inventando parcerias do aludido calibre. Cumprido o regimento, o resto que se lixe.

E o resto - que é tudo - lixou-se. Amén.

 

 

"Limbo"

João-Afonso Machado, 23.05.12

Tarde morna de muitos dez minutos

e pernas sem pés,

diminutos andares sem rumo

nos vagares dobrados, quebro o prumo,

ânsia tanta de outros ares.

 

Tarde cega de poente,

passeio mudo de cores,

negrura de gente.

 

Desejo e dores,

tudo não sente nem grita de esquecimento.

Sequer alguém imita

o forte arrepio,

o medo da morte,

um nobre momento

 

- o sofrimento.

 

 

Pinóquio recusa a volta a Portugal

João-Afonso Machado, 23.05.12

PINÓQUIO.JPG

José Maria Nicolau, João Roque, Joaquim Agostinho, Firmino Bernardino, Sérgio Paulinho... - e José Só-não-digo-o-resto porque Só-temo-acabar-abusivamente-julgado-e-condenado. Uma pleiade, enfim, de artistas da bicicleta, trepadores exímios dos cumes nacionais: outrora a Torre, a Senhora da Graça; actualmente a fenomenal ascensão da Covilhã a Alcochete.

Na qual brilhou a nossa nova coqueluche, Pinóquio para os amigos. A sua performance, do Interior ao Litoral, não passou despercebida aos maiores do ciclismo francês. Daí o convite e o sonho do Tour. E a enorme honra nossa, a par com o desgosto de sabermos Pinóquio arredado, para todo o sempre, cá da gente. Exigências da sua equipa Freeport/Sorbonne, a quem garantiu um lugar de permanência e destaque nos jornais. No pódio, em suma. No galarim. E, a bem dizer, porque não ambicionar tão altos voos iluminados pela lanterna vermelha, abolidos que foram os carros-vassoura?

 

 

180º

João-Afonso Machado, 21.05.12

1999, no final do século passado. Timor vai-se matando, mais guerrilha, mais indonésios. O Mundo desperta e toma uma atitude. Por cá, à distância de quatro anos do Europeu de futebol, as varandas cobrem-se não de rubro-verde mas de lençois brancos. Quiçá bastantes para enxugar os  remorsos, perdão, o patriotismo da República Portuguesa (parafraseando a sacrossanta Constituição do actual Regime).

2012, de acordo com a imprensa escrita. O Presidente deste nosso desastre, Cavaco Silva, desloca-se ao estado soberano de Timor-Leste e sorri. Taur Matan Ruak - quem será, para o comum dos mortais? - sorri também. Há vénias e uma pergunta no ar (sempre conforme os jornais): «Neste momento qual é o país que precisa mais de ajuda do outro?»... Asiaticamente, a substância daquele estranho enigma mantém o sorriso - «deixa uma porta aberta à possibilidade de os timorenses ajudarem os portugueses» - e é Cavaco que termina não negando a valia desse auxílio, caso seja «um bom negócio para eles». "Eles" são os presididos pelo tão indecifrável designativo.

1987, retrocedendo no tempo. O Duque de Bragança,  o Chefe da Casa Real de Portugal, apela e encabeça uma campanha visando a  ajuda aos desgraçados provenientes dessa longínqua latitude e arrumados às três pancadas no Vale do Jamor. Para que não lhes faltem nem os cobertores nem a comida.

Que mais acrescentar? Talvez apenas - viva o Rei! Vale o mesmo (já agora) - viva Portugal!

(Antecipando, é claro, a resposta aos costumes na seguinte forma: perguntem a Timor e aos timorenses...).

 

 

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