Já então faltávamos às aulas matinais. O Gabriel por ficar preso nas suas águas-furtadas - o zigurate, como ele dizia - observando os astros e de ouvidos colados ao Espaço 3P. Eu, mais por preguiça, não tanto por noitadas musicais, à míngua de aparelhagem e mesmo de electricidade em casa.
Mas em 1974 os Doors tocavam até à rouquidão total das pilhas do meu pick-up. Assim como os Jethro Tull, Crosby, Stills & Nash, Ten Years After, Emerson, Lake & Palmer... Discos que os primos traziam de longe, de acordo com uma lista razoavelmente actualizada, obra do Gabriel, produto da sua "frequência modelada" e do vanguardista Espaço 3P.
Não creio houvessem mais, lá no Liceu. Mais que só usassem botas, camisolões, a clássica calça de ganga ou bombazine. E o cabelo a tapar as orelhas, talvez, mas sem entrar em tolices pelos ombros abaixo. Não, o resto da malta pendurava-se em sapatões inauditos, escondidos em calças que lembravam reposteiros, e, em vez de colarinhos, tinham asas duplas: as da camisa e as do blazer de quadrados espaventosos. A lembrar o George McCrae e os Temptations, o James Brown, Marvin Gaye. E vá lá saber-se porque não me sai agora da cabeça o Sugar Baby Love das Rubettes...
Mal sabiamos, nem um ano após, a rapaziada, posssuida de Marx, de Lenine, de Mao, adoptava generalizadamente as botas de lona, os jeans novos a armar ao coçado.
O Gabriel e a sua familia instalaram-se na Galiza. Por cá fiquei, receptador de fotografias dos grandiosos funerais de Franco, escrupulosamente enfiados nos paineis escolares de informação. Um escândalo! Um risco, até, faltavam ainda uns meses para o País recuperar algum juízo.
Porque hoje é sábado e passei em frente do nosso velho Liceu, ocorreu-me tudo isto. Ainda nos encontrámos na Faculdade, eu e o Gabriel, mas ele depois enveredou pelo Grego e pelo Latim e eu deixei-me estar cá em baixo, com os pés assentes na terra. Hoje é padre e ri-se complacente sempre que encontra este seu amigo, o pecador profissional de sempre.