Memórias vilacondenses (XIII)
Na esquina da Bento de Freitas com o jardim, era o mini-hiper-mercado da Praia. A salvação da comunidade. O "Sr. Mário", está tudo dito. Um espaço com menos área do que pé-alto, e cascatas de rolos de papel higiénico jorrando sobre bolas de queijo flamengo, garrafões de lexívia à mistura com garrafões de vinho, cêras e patês, cerveja, venenos, azeite, uma amálgama engarrafada, sacas de tudo quanto há - arroz, massas, pós suspeitos - graxa e conservas, enfim um labirinto indecifrável para todos menos para o Sr. Mário, a sua Sameirinho e talvez mais uma ou duas previlegiadas ao seu serviço.
Um balcão caprichosamente curvilíneo não bastava para os muitos clientes da casa. A espera vinha até cá fora ao passeio. Felizmente a chuva de Vila do Conde era um mito derivado do nevoeiro, uma simples questão de camisolas apenas.
O patrão - o Sr. Mário - não levantava o rabo da caixa registadora, sempre de lápis na mão. Quais calculadoras! E conhecia toda a gente, reverencialmente tratava toda a gente em mesuras ao mais puro estilo das côrtes setecentistas. Anunciasse eu o nome da minha querida Avó e levaria a arca inteira dos gelados Olá!, se a pedisse... Mas não, estupidamente tinham-me ensinado que não...
Já posteriormente mudou para espaço maior. Deixou aquele recanto, o encanto daqueles armários forrados a produtos, as janelas onde desbotavam ao sol bisnagas e latas, sei lá o que mais. Novidades dum tempo de que não sou testemunha presencial.
Antes, porém, era ali, paredes amareladas, os trocos de tostões dados em espécie, digo, em rebuçados, mais os recados à Ex.ma Senhora minha Avó. Numa multiplicidade de vénias, erguendo-se mesmo à despedida, ligeiramente, na sua cadeira diante da registadora.
Conhecedor profundo da comunidade veraneante, houve um episódio tremendo de lapso ou distração. Fenómeno estranhíssimo de que foi protagonista um reputado médico lisboeta. Isto quando andavam em moda as calças claras e umas camisolas de gola alta (as senhoras recordarão o tecido...) usadas no estio - sobretudo no vilacondense... - e os blazers de trespasse, botões dourados com âncoras em baixo-relevo. Ignoro o que o Dr. António Dias-Costa terá comprado lá. Sei apenas que, aprestando-se ao pagamento, perante o seu traje, o Sr. Mário sempre respeitoso, levantou-se do seu poiso na registadora e inquiriu, quase em sentido:
- Fará V. Ex.cia o favor de dizer, Senhor Almirante!