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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O caos

João-Afonso Machado, 30.04.12

Não creio fosse inevitável. Nem que a culpa seja dos ribeiros e da sua força motriz tão barata, ou do fácil vazadouro que oferecem aos detritos. Porque a visão das águas é um espelho, o reverso da estupidez das gentes. Tudo começou há algumas décadas.

E de fábrica em fábrica, fabriquetas, da ilusão para a ambição, as bouças e as várzeas, as cores da natureza e os carreiros a curvetear no espaço, tudo se transformou na impossibilidade de um retrato atraente. Confirmei-o ontem.

Vieram os tempos de agora. As falências, o abandono da lavoura, a terra transfigurada em talhões para construção. De onde surgiu tanta gente?

Ao longo de quilómetros, a paisagem é isso. Com cada vez mais de ruina e abandono. O verde é, sobretudo, a triste extensão dos silvados.

Passa-se mal. Todos passam mal, com crescentes dificuldades. Alternativas? Não sei. Esta feira parece dificílima de desmontar.

 

Paradoxos

João-Afonso Machado, 28.04.12

O parque de estacionamento da Faculdade era tacanho, em terra batida e cercado por um velho muro de granito. Com alguns automóveis lá deixados, nesse tempo em que mesmo uns tantos prof's utilizavam o transporte público. E os escassíssimos colegas motorizados - era do que gastavam, quase sem excepção: o Citroen Dyane, a generosidade de alguns (poucos) pais mais abonados.

(E o autocarro era o 78. Laranja, ainda de dois andares, onde já não se podia fumar mas com as janelas de abrir ao jeito de uns piropos ou de qualquer recado de última hora. Atravessava a cidade na diagonal e eu chamava-lhe o "autocarro do amor" - titulo de cançoneta da época - porque 45 minutos de viagem, sentados no lugar certo, davam para dose farta de conversa, planos... dava para dar a mão e para uma saída rumo à pastelaria, antes do estudo a dois...).

Agora, nas raras vezes em que me desloco à Faculdade - por norma, para os nossos jantares de curso - impressiona-me a imensidão do estábulo dos carros. Com boxes devidamente assinaladas no piso bem tratado e dezenas e dezenas de viaturas, não propriamente tão económicas como o velho Dyane de então. Uma entrada, uma saída, sentidos únicos, vigilância... É mesmo provável tenham extinto o autocarro por escassez de estudantes sem carta nem máquina própria.

Paradoxal! Naqueles anos não tinhamos dinheiro, mas tinhamos futuro. Hoje, dinheiro haverá; futuro é que parece que não.

 

Precipitação minha...

João-Afonso Machado, 27.04.12

Pensei fosses tu, mas não, somente um enganador desejo meu. Desculpável, aliás. Porque há momentos em que os anos param, assistindo ao bailar das ideias que adivinhei naquele espírito poisado na palma da mão. E não cuidei de saber, sequer, se acabara de chegar ou se ali permanecia na ignorância do passo a dar. Tão a teu jeito! Tão da forma como consegues transformar um beijo num arrependido pedaço de medo; ou pedires não adormeça sem te abraçar primeiro...

A verdade é que dificilmente ficaremos no mesmo degrau da escadaria. Subindo ou descendo, havemos sempre de nos encontrar em movimento. Circuitando. Ou queres ensinar-me agora a sentar no Tempo?

Por isso, já lúcido, insisto nunca poderias ser tu. Assim repousada, ignorando o mundo à volta. Ainda que - tal como ela - é provável nem te desses conta de alguém cantando perto: «Toda a ilusão se desfez. / Não és aquela que eu vi, / Não és a mesma visão, / Que essa tinha coração, / Tinha, que eu bem lho senti.». 

Chamava-se Almeida Garrett e estava mesmo atrás, em cima do pedestal. Vês como deixamos escapar, às vezes, tão raros, indesperdiçáveis, bocados da nossa vida?

 

 

 

Perenemente - o sável

João-Afonso Machado, 26.04.12

Este rio que eu queria fosse outro o meu vizinho, limite sul da minha terra, a única que concebo ser minha, tem as suas delícias. Tem as memórias do que teve - e tem o sável. E os saveiros e a festa dos ribeirinhos e dos minhotos de gema, mais os amigos de sempre. Este ano foi em Arnelas, V. N. de Gaia, estranho buraco junto ao Douro, um misto de prédios em escadinha, vindos do lado de Avintes, e de água vasta, cá em baixo, a calar o bulício no topo. Pelo meio, a ciência culinária do Sr. Rodrigues.

O sável foi trazido do fumeiro. Esgaçado como um porco, a gente a ver tirarem-lhe a casca, as espinhas fugindo, levadas pelo fumo, a secura a pedir molho e o inevitável refresco. Numa mesa grande, enorme, organizada pelo Hernâni, e sem pressas, demorada. Não há igual no País inteiro, diga-se em abono desta margem não nossa, isso é garantido.

Como não tem par estes momentos em que, parentes e amigos, todos se revêem amigos e parentes.

 

 

Eanes ontem - no Passado e no Presente

João-Afonso Machado, 26.04.12

Nessa altura Sá Carneiro era a uníca hipótese credivel de um estadista à altura, face ao Portugal sobrante do PREC. E Sá Carneiro, tolhido por uma Constituição espelho das imposições ideológicas do MFA, por um Conselho de Revolução igualmente castrense, Sá Carneiro sempre de olhos postos na Europa livre, não podia contemporizar com o Presidente Ramalho Eanes. Um homem sisudo, um espaventoso par de patilhas, acima do mais um não-político profundamente influenciável. E cujo principal conselheiro e mentor era - azar dos azares - Ernesto Melo Antunes. Por tudo, Sá Carneiro "declarou-lhe guerra", no decurso da qual, aliás, morreu.

Assim aprendemos a não gostar de Eanes. O bizarro Presidente da República que recomendou aos portugueses Salgado Zenha como seu sucessor, num inesquecivel assomo de eleitoralismo. O ingénuo dirigente do PRD a cuja iniciativa de apresentar uma moção de censura ao Governo deve Cavaco Silva a sua primeira maioria absoluta. Enfim, o palavroso de então, o alvo dilecto das caricaturas - livros inteiros delas... -  de Augusto Cid.

Mas os anos foram passando, as patilhas de Eanes tornaram-se menos ostensivas, o seu discurso menos rebuscado, a sua discrição impossivel de não ser enaltecida. E, já à luz da História, o personagem tornou-se simpático e honorável. Sobretudo honorável, sem dúvida uma boa escolha de Fátima Campos Ferreira, ontem, para a sua entrevista televisiva.

Recordaram-se esses conturbadíssimos tempos. O 25 de Novembro, os seus antecedentes e o que se lhe seguiu. Sem papas na língua.

E com um breve momento que é outro ponto de ordem no Portugal pós 25 de Abril. Quando, justamente, perguntado sobre Mário Soares, Ramalho Eanes declarou ter perdido a estima pelo soba socialista depois da leitura do «livro de Rui Mateus».

Chama-se esse livro "CONTOS PROIBIDOS - MEMÓRIAS DE UM PS DESCONHECIDO". Que é como quem diz, a denúncia do verdadeiro Mário Soares e da sua rede de influências e clientelismos. O único livro em Portugal cuja edição se esgotou num dia só - aquele em que surgiu nas bancas...

Agora disponível na Net, porém.

 

"Ribeiro meu"

João-Afonso Machado, 25.04.12

Lavrado na terra verde. Era o desenho

dos salgueiros a falar

o dia todo, o engenho

das águas sem turvar

e o rumor da aragem a dançar.

 

Esquinado de granito. O recorte

das sombras coloridas

de primavera e verão, transporte

das tardes e das vidas

já só quase nascidas.

 

O sonho da distância. E do sabor

da maresia, insondáveis fundos

de oceano e temor,

ribeiro meu, espantosos mundos

de velas, peixe e remar fecundos.

 

 

Para se sentirem vivos apenas

João-Afonso Machado, 24.04.12

Contrariamente ao que afirmam de si mesmos, Soares e Alegre não são socialistas. Tão pouco democratas ou autocratas, devotos de qualquer corrente ideológica defenida e consistente.

Soares e Alegre são, e sempre foram, toda a vida, apenas políticos de carreira. Com os sintomáticos tiques que essa sua opção possa manifestar: a fortuna pessoal, a ausência de qualquer ocupação profissional alternativa, o exílio dourado, umas conferências e uns escritos, a abundância de viagens e as mais amplas benesses estatais. Ou o mais profundo desprezo por qualquer preocupação de coerência pessoal, bem acobertado por tonitroantes discuros apologéticos da Ética.

Assim viveram todas as décadas da sua já longa existência. Em nada acreditando verdadeiramente, sequer na vida para além da vida.

Esse o drama de Soares e Alegre. A sua finitude, a proximidade do derradeiro dia, o vácuo que se lhe seguirá. E por isso, aposentados embora, ainda recentemente castigados - de modo duro, indubitável - pelo eleitorado, continuam agarrados, de unhas e dentes, à ribalta política de onde, em boa verdade, há muito se encontram afastados.

É o medo da morte que os leva a proclamar, sob qualquer pretexto, como estão vivos e de saúde, eternos numa eternidade de palavras somente. Que lhe ocupa a mente e impede nela penetre e se instale a dolorosa consciência do fim.

Tal qual Saramago em vésperas da sua morte, invectivando o Deus em que não cria mas tanto gostaria de encontrar.

 

Memória de elefante

João-Afonso Machado, 23.04.12

Tudo se torna cada vez mais claro. Desde logo, o pretenso vanguardismo legislativo da era zapaterista, o branqueamento do passado republicano, como se a Guerra Civil tivesse sido apenas um imenso genocídio perpetrado pelas tropas de Franco..., e, finalmente, o elefante no Botswana.

Assim em definitivo saltou a rolha à imprensa, com a de cá sempre muito colaborante. Ainda hoje, em cima da banca onde comprei o jornal, a capa de uma revista da especialidade cor-de-rosa explicava que, no caso de "queda da Monarquia" (sic), Letizia teria com que sustentar as filhas. E na incontornável fotografia ao lado, o Principe Felipe (junto de quem a sua Mulher se encontrava em qualquer cerimónia oficial) sequer era mencionado, ignoto, porventura sub-repticiamente rotulado de putativo insolvente.

Outras menos tontas publicações não esqueceram também o tema: o declínio da Monarquia espanhola. Porque, não nos iludamos, a Esquerda continua a saber trabalhar na maior eficiência. Falando sempre em nome do que seguramente não representa: o povo, o conjunto dos cidadãos.

E o resultado está - estará - ai, bem à vista, aquando da sucessão de Juan Carlos. Sim, Felipe enfrentará adversidades que o Rei não conheceu. O que não se percebe é como será, mudando o Regime, o futuro da Espanha. Como evitar a bulha? Como harmonizar castelhanos, galegos, bascos, catalães...? Sem a Monarquia, depois de Franco, um nome inaceitável, politicamente indizivel, até?

Deixo aqui uma sugestão: recorram os espanhois ao Marechal Tito. Ele saiu-se muito bem com a sua Jugoslávia.

 

 

No dia do Senhor

João-Afonso Machado, 22.04.12

Não gosto de abismos sem profundidade nem de cordilheiras de betão. Ou de cardumes de gente. Enfim, não engraço mesmo com tudo o que nos separa do mar e lhe roubou os seus azuis pergaminhos de imensidão.

Como agora. As águas perderam-se para lá da pista em duas faixas para os ciclistas, do amadeirado percurso pedonal e de todo um bairro de restaurantes já devorando as entranhas do areal.

O Céu ficou mais longe. Fora do nosso alcance, tal qual o Senhor da Pedra, em Miramar (onde uma pausa, o vagar para a confraria, a romaria?), último aceno das almas à grandeza divina. Depois de todos os anos que demorou a invasão do litoral.

Assim... Só talvez se o conseguisemos encravar - o mar - entre o Lindoso e a Caniçada, entre Salamonde e os Pizões. Com os seus acessórios todos: as marés, o sal, as rochas, a rebentação das ondas, os mexilhões. E a sardinha e o carapau, o robalo e o sargo, claro.

Por muito menos do que isso flutuou a jangada de pedra de Saramago. E algures, decerto na raia, ficaria o Brasil.

 

 

"Bolerando"...

João-Afonso Machado, 20.04.12

Em minutos vi-me de saída combinada com a funcionária mais bonita - mas tão bonita! - lá do Centro de Saúde. Iamos ao teatro, só ela me arrastaria essa noite ao teatro, essa e as outras todas que ela quisesse, mas só ela e mais ninguém.

A peça... passou. Nada recordo senão a amálgama de sonhos em que o palco era outro, muito outro. Foi quando um casal conhecido nos desafiou para um "Bolero", danceteria tremenda, ali para a Maia, num antigo armazém industrial das Guardeiras.

Fomos. Se calhar não deviamos ter ido. Mas fomos, caindo em cheio sobre ritmos incansáveis, imparáveis, ginasticadíssimos, sul-americanos dos pés à cabeça. Uma desgraça para a minha aselhice e para a minha hernia.

De modo que tratei de me defender. Empatando sempre, agarrado a tangos ausentes, suspirando por eles, praguejando, era uma injustiça a lacuna. Logo o tango!, esse património da Humanidade...

Eis senão quando...

Já não tinha por onde me safar mais. E há anos não dançava tango, em boa verdade, assim potenciando a vergonha depois de tanta palração sobre Gardel.

Era dos mais fáceis ("adios muchacho"... tataratátá, tataratátá) e lá encaminhei a beldade para a pista, onde seres de colete e camisa aos folhos faziam passos espantosos, carregados de sentimento e fatalidade.

Encaixei a pequena à ilharga, a mão direita nas costas, muito em baixo, o braço esquerdo esticado em frente. E dei mais uns segundos, olhando-a nos olhos, antes de seguir pra diante, num andar cauteloso, quase em "câmara lenta". Até ao erguer da perna (poucochinho, claro, mas ela não podia ver...), até ao momento ímpar de a vergar pela sua delgada cintura. Não caímos. E rodando a seguir, no sentido do ponteiro dos relógios, para voltar à base, sempre naquele naquele propósito de militar comprometido.

"Adios muchacho"... tataratátá, tataratátá, cessara enfim, coincidentemente com a nossa chegada ao ponto de partida.

O que concluir do longo silêncio recebido então da mais linda menina do Centro de Saúde, o meu par dessa inesquecivel noite?

 

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