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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Heróis - precisamos

João-Afonso Machado, 29.02.12

Ignoro se ainda os há por cá, os heróis. Temo que não. O heroico "povo abrilino" é, sobretudo, do discurso sindicalista; o "povo-povinho", que somos todos nós, alcançou fama planetária pelos seus "brandos costumes" de agora; e o intratável "povo-povão" tudo destroi - praias, rios, pinhais - e revê-se na heroicidade telenovelísitica.

Enfim, Amália morreu e Eusébio tem passado mal os últimos meses. Os nossos mais prováveis candidatos a heróis - Mourinho e CR7 - seguiram o partido de Castela. E se fossemos buscar outros à História pátria - um Beato Nuno de Santa Maria, um Mouzinho de Albuquerque - logo nos cairiam em cima Isabel Moreira e o BE, vociferando contra anacronismos, a pregarem o direito à adopção por casais do mesmo sexo.

E, no entanto, os heróis fazem falta. Constituem um incentivo, um exemplo, um conforto. Uma força que é nossa e está connosco, vive as nossas dores, ajuda a ultrapassarmos os nossos temores. Os heróis são a melhor terapia para a colectiva falta de auto-estima.

(Ao contrário das divindades - Lenine, Tito, Mao, Fidel - criadas e depois embalsamadas pelos comunistas).

Mas é neste deserto de heróis que havemos de nos mexer. E de improvisar, outra nossa reconhecida aptidão. Quem não tem cão, caça com gato...

À falta de melhor, escolho para herói nacional do momento o Ministro Victor Gaspar: não se veste como um ministro, nem como um ministro fala; nem mede cada palavra proferida, ao contrário dos ministros em geral. Mas é, tão-só o Ministro das Finanças deste Portugal desendinheirado e mendicante. E sempre a resvalar junto do precipício das contas e dos orçamentos.

 

Memórias vilacondenses (VII)

João-Afonso Machado, 28.02.12

Tinha os ouvidos cheios das histórias da juventude do Pai. A partir de 15 de Agosto, nesse tempo, os caçadores (como ele) invadiam a Azurara e era fogo cerrado sobre as rolas, entre dunas e pinhais. Fogo cerrado e muita caça... Vai daí, não sei o que me passou na cabeça, na década de 80 do século passado, trouxe a espingarda, manhãzinha cedo, atravessei a vila armado e enfronhei-me em tais paragens. Ainda o novo estaleiro não estava lá.

Eram terrenos lodosos, alagadiços, consoante a maré, já povoados de muita gente. E, também, de tarambolas, abibes, uma parafernália de aves ribeirinhas fora do programa de caça. Mas sempre uma urbe sufocante em meu redor. Tanta gente, espreitando atónita! Claro que as rolas há muito tinham procurado poisio mais recatado.

De modos que tiros - nem um. Salvo aquele disparado debaixo da torre dos Pizarros - esse antigo mosteiro - visando essencialmente acordá-los. Miraculosamente não apareceu a Guarda, a saber o que fazia ali e com licença de quem. Assim escapei incólume à prisão, à apreensão da arma e a uma série de chatices decorrentes.

O mundo ribeirinho acabava então na torre dos Pizarros. Daí para a frente, ou lama negra ou água rente. E eles, amigos de sempre. Mais: os melhores amigos de sempre dos seus amigos. Isso já os os Pais enalteciam.

À noite contei-lhes o episódio. Riram-se e beberam mais umas cervejas. Porque na altura, chegando a noite, os Pizarros arribavam a Vila do Conde. Bicicletando. O Mi, o Miguel, o Eduardo, o Zezinho... e a Bebas - os olhos mais bonitos da praia, como já não há comparação desde que a poluição tomou conta do Ave e as águas se turvaram (verdes cristalinas que eram, a ver-se-lhes o fundo).

Reuniamo-nos então numa cervejaria frente ao antigo cinema. Demoradas noites de canecos e disparate. Até ao fecho do honesto estabelecimento. E sempre com alguém a ficar um pouco para trás, agarrado a uma parede, a cerveja provoca efeitos tais...

O estaleiro perturbou todos os equlibrios. Os Pizarros dispersaram. Encontro-me com eles em abraços que vêm de gerações. Armado?...  - já não tenho idade para tolices, nem a Azurara espaço para contemporizar com elas. Ficou a amizade. E foi muito, decerto o bastante.

 

O apito parado

João-Afonso Machado, 27.02.12

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É notícia: há praticamente um ano, o processo "Apito Dourado" está quedo. Na Relação do Porto, onde subiram uma série de recursos. Porquê? Porque um acordão, entretanto proferido, não foi devidamente notificado aos arguidos - Valentim Loureiro e  José Luis Oliveira. Ou seja: faltou a carta registada. Ponto final.

O Ministério Público acabou por se insurgir contra a situação, pretendendo apurar responsabilidades pela demora. Daí o douto despacho - «Trata-se de incidentes estranhamente anómalos num processo com as características do presente, mas que seria conveniente encontrarem cabal explicação que se promove  seja obtida junto dos senhores funcionários encarregados da tramitação».

Será necessário acrescentar algo?

Somente, talvez, terem ocorrido diversas prescrições, entretanto, que os arguidos não esqueceram de invocar... Sob ameaça de, caso seja decidido em contrário, avançarem para o Tribunal Constitucional.

Assim vai a Saúde em Portugal!!!

Entrementes, mais a sul, Isaltino Sem-Pavor, à força da espada, obtem contra os mouros êxitos idênticos.

Ah!, Ourique!, Ourique!

 

 

Conversa de almoço

João-Afonso Machado, 27.02.12

Serenamente a conversa não evoluiu para o omnipresente tema da Monarquia vs. República presidencialista. Teria sido um almoço curioso, presidido pelo heroismo de Cavaco Silva, apedrejado na jornada de Arroios, agonizando, mas ainda com forças para dizer: «Morro bem. Salvem a Pátria».

Não. Cavaco tornou-se uma desilusão. A sua Senhora também. De modo que não pude ainda avançar com a segunda linha de argumentos: e invocar a Infanta D. Adelaide, a sua vida de cem anos ao longo de quantas aventuras em momentos cruciais da História mundial; e a sua dignidade de sempre, a sua humildade e discreção - jamais em bicos de pés, pavoneando-se por aí a tentar dar nas vistas, aos pulinhos, "sou eu!, sou eu!, íntima da Senhora Infanta, fui a primeira a saber do seu falecimento!".

Porque, na realidade, à última hora surgem sempre os, afinal, amigos de longa data, em resmas de papel contendo propostas de epitáfios de duvidoso gosto. A vida política é um pouco disso tudo, sempre - e só - condimentada pelo infernal "politicamente correcto ou incorrecto".

A questão desta feita centrava-se no inimigo comum. O inimigo de qualquer português, portanto. O Estado. Essa entidade povoada de adoradores da deusa Ética que nos sorve em impostos todas as suas dificuldades em manter a sua prerrogativa de "Estado social". Como?- tributando-nos sem dó nem piedade como meio de obter fundos para manter hospitais e escolas abertas (que é como quem diz: institutos, fundações, parcerias e sinecuras afins), e assim continuar invectivando a iniciativa privada.

O meu Amigo e anfitreão, Engenheiro e Mestre, está de partida para Angola. Chefiará uma equipa empresarial encarregada de ali montar uma unidade fabril. E de, depois, entregá-la ("chave na mão") contra o pagamento do preço.

Oxalá José Eduardo dos Santos não tenha aprendido alguns dos piores hábitos do Estado português. O meu Amigo não merece mais desilusões.

 

Domigo de manhã

João-Afonso Machado, 26.02.12

Uma cidade de silêncios, não fora o piar da  gaivota anunciando a proximidade de terra. Ou talvez as rotinas dos mais madrugadores. Há bicicletas e pedais com força para cavar o dique e suster as ondas. Outras pequenas verdades velejam nos parques. Pequenas? Antes, talvez, simples e honestas, frias como punhais. Destituidas de discursos, desurbanizadas, a mandar calar os arautos.

Ao domingo, manhãzinha cedo, já todas as máscaras cairam. Até a cidade se pentear outra vez, será o mais cru momento da novela.

 

 

Guimarães, Berço

João-Afonso Machado, 25.02.12

A cidade eufórica, de braços abertos ante a torrente de camionetas a descarregar gente. Bandos de escuteiros, portuguesinhos da silva e dezenas e dezenas de galegos, nem tanto de castelhanos. Guimarães - Capital da Cultura. Os programas mais diversos decorrem sobretudo à noite, seja no Toural, seja nas pequenas praças do Centro Histórico. Mas as manhãs e as tardes nem por isso são menos vivas. É o tempo próprio da visita, encosta do Castelo acima, Largo do Carmo abaixo. Numa esquina, uma tuna académica entoava os seus cânticos. Os transeuntes cercavam-na gozando o espectáculo. Guimarães rejuvenesce e orgulha-se dos seus pergaminhos de "berço da Nação". Cercada de uma modernidade por vezes duvidosa, quando espreitada lá de cima, da Penha. Onde os filetes do restaurante do Hotel mantém a mesmíssima qualidade de sempre.

E onde, além do miradouro e do passeio, certamente por efeito da altitude, a vida desata a lingua e fala, fala, conta-se toda por quantas décadas de triunfos e derrotas... não própriamente guerreiras.

 

 

Memórias vilacondenses (VI)

João-Afonso Machado, 23.02.12

Era uma esfinge, também sem nariz, plantada naquele ermo, nem Vila do Conde nem Caxinas. De uma altura quase insuperável, sobretudo para mim, quantas vezes ao dia carregando a bicicleta até ao patamar do 2º andar, onde veraneavam o Tio João e a Tia Lélé. Entendia-se porquê: em finais de Agosto, o Tio João rumava Lisboa, onde o esperava o emprego; a Tia Lélé ficava mais duas ou três semanas, com a Balocas e... comigo. O Xinoca há muito se fizera ao planeta na sua Gilera. Deixando-me a dita bicicleta.

Setembro era o meu mês de eleição. Vila do Conde tornava-se mais respirável, nela se mantendo apenas a "velha guarda". A Tia concedia-me liberdade absoluta e forrava o frigorífico de bifes para os meus almoços. Deixava-me fumar à vontade. E eu tinha, então, 16 anos... Setembro era mesmo o meu santo mês de liberdade!

O pioneiríssimo prédio ficava no cruzamento da rua que vinha do Hotel com a que levava ao Caximar. Uma distância considerável, à noite, para uma Senhora percorrer a pé. Daí o compromisso diário: após jantar, levaria a Tia ao serão em casa dos amigos. De bicicleta.

De modo que - hoje não creio fosse capaz - feita a toillette com os naturais arrebiques femininos, lá marchávamos no velocípede, eu ao volante, a Tia sentada no quadro da pasteleira. Com todos os cuidados - era a época das "bocas-de-sino" - para não sujar as calças no óleo dos pedais e da corrente. Estrada fora, em amena cavaqueira, o meu Português Suave sem filtro no canto da boca... Sem problemas, sempre a descer.

Já o regresso, com hora devidamente marcada, se afigurava mais penoso. Por causa de umas cervejitas pelo meio, do cansaço de um dia inteiro, porque a Tia não era magricela e o trajecto, em vez de descer - subia sem hesitações, Hotel fora.

Ainda assim, o Português Suave sem filtro lá alumiava a caminhada. E, entregue a Tia em casa, eu voltava aos meus afazeres. Regressando, em definitivo, não raro, com a Balocas nesse mesmíssimo quadro, já quase com dignidade de transporte público.

Era assim a velha Vila do Conde. Com este prédio mais branco, manchado da humidade, uma tarja verde, em volta das varandas e janelas, e sozinho. Sempre sozinho até que Caxinas e a vila se engoliram recíproca e promíscuamente.

 

 

 

A "Mãe-coragem"

João-Afonso Machado, 23.02.12

Não estou, de modo algum, habilitado para saber se se fez justiça; ou se, meramente, se temeu cometer uma injustiça. A população de Lousada e arredores, muito mais convicta, quis aplicar cá fora a pena que lá dentro seria sempre inviável - o linchamento do arguido. Valeu-lhe a Guarda. Certo é, também, a sua vida nunca mais será a mesma. Uma outra forma de castigo, afinal.

Obviamente, venho referindo o célebre caso do desaparecimento do miúdo Rui Pedro, hoje (se vivo for) um homem... - Que homem, meu Deus! - perguntar-se-ão minuto a minuto, segundo a segundo, a sua Mãe, os seus familiares.

Esse o inocultável lado do drama. Porque o jovem pode mesmo já ter morrido - pode mesmo, por isso, já não sofrer. Mas a Mãe está cá (hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo...) suportando a angustia com que acorda de amanhã e adormece à noite.

Os entendidos em Psiquiatria são unânimes em relevar a importância do aparecimento: vivo, ou mesmo morto. É que a dúvida desgasta. Mata. E a certeza pode doer - e muito - mas tem pela frente um luto que se inicia e, ora mais cedo, ora mais tarde, cessa. Deixando a vida prosseguir.

De algum modo, esse um ponto em jogo ainda. A condenação do arguido não restituiria o filho aos seus progenitores. Mas teria, decerto, uma influência benigna, imprescindível, no seu estado  de espírito. Muita fé foi depositada nesse passo que não chegou a ser dado.

A Imprensa retrata a Mãe do Rui Jorge, desde o seu desaparecimento até ao presente. É impressionante medir nas rugas e naquela expressão desamparada o que terão sido, para a senhora, estes anos em que nunca desistiu de rever o filho.

Termino como principiei: não disponho de meios que me permitam sequer emitir um comentário critico sobre o acordão lido ontem. Mas compreendo a revolta das gentes. Aliás, uma revolta irmã gémea da insegurança geral em que o desfecho do processo se traduz.

Uma vez mais - fundadamente ou não - as instituições judiciais deram passos atrás relativamente à confiança que deviam merecer dos cidadãos. Em capítulos em que todos são especialmente sensíveis - esses que versam os nossos filhos.

 

Carnavalices

João-Afonso Machado, 22.02.12

Os foliões principiavam a chegar à mansão imensa, encasacados, esfregando as mãos, os pés bem carimbados no chão. Um frio dos diabos. Era Carnaval. Urgia divertirem-se. Obrigatóriamente, por defenição da efeméride. Um chão de tijoleira esperava-os, numa sala do piso da entrada. E assim se foi à música, aos primeiros passinhos de dança. Muito conversada, pouco abanada, menos convincente. Ordenando ao tempo não se demorasse a passar.

Os ritmos - irrepreensiveis. Próprios da geração que ali se juntava. Desses que deixam saudades a qualquer um. Mas a coisa continuava bastante de falatório, uns meneares, uma ou outra senhora mais habilidosa no saracoteio.

E o relógio, pasmão calaceiro, com os ponteiros na ponta do chicote. Sais, ou não sais, do sítio!, pareciam atirar-lhe à cara.

Até, finalmente, a ceia ser servida no andar cimeiro. Foi a debandada. Na sala ao lado, uma lareira acesa. Nem mais - uma crepitante lareira de Carnaval alimentada a serpentinas e outras peripécias entrudescas.

Foi assim. Um tinto muito razoável, os salgadinhos da praxe e os doces. Mais a bôla de carne. E as novidades em dia, desde antes do 25 de Abril até hoje. Sempre a dois palmos da lareira nesse espaço amplo onde todos cabiam em cadeiras ou, de esguelha, nos seus braços. Mas sem sofrer quaisquer horrores siberianos.

Para o ano será em Torres Vedras ou na Mealhada. Apertando o termómetro, em Loulé. Onde soubermos a cultura brasileira local sambe desnudada. Mesmo porque 2013 será já um ano de glória e o Governo, consabidamente, não questionará tolerâncias de ponto.

 

O Herói de Alberto

João-Afonso Machado, 22.02.12

«(...) Todos o conheciam, e ao seu parceiro, o Herói. Inseparáveis os dois, o Alberto e o seu cãozito, também ele de idade incalculável, o pêlo acastanhado e comprido, já um pouco ralo no dorso. Por isso censuravam as mamãs as suas achegas aos filhotes, tão a contragosto do Herói, que adorava crianças e sabia andar em duas patas.

Não tinha o Alberto um amigo mais fiel, um bem que lhe fosse mais precioso, latindo de manhã à noite o prazer que sentia em estar ali, os dias todos, na companhia do dono.

Residiam em lugar desconhecido, hoje acolá, provavelmente, amanhã além. O Alberto dispensaria a cama, mas o Herói, é certo, dormia sempre no seu regaço. Era, mais as suas frondosas barbas grisalhas, o cachecol, o quente que lhe secava a humidade das noites mais agrestes.

(...)

Eram noites em que o cantorio prolongava, junto do rumorejar das ondas, estranhos e tardios bafos oratórios. Como se cantasse chamando pelas estrelas quentes do Estio, à espera que S. Martinho acordasse e cantasse também.

O Herói gania em coro com aquelas estrofes sem silabas, sons levados pelo mar e pelo vento, perdidos na escuridão deserta da praia. Por vezes, alguém passava à distância e ouvia:

- Lá está o velho Alberto com a piela! Qualquer dia fica-se, de uma escorregadela no cais.

Mas não, quem adivinharia que, mesmo então, nessas madrugadas de hinos ao sol do Verão, o Herói lhe guiava os passos no breu, sempre à ilharga do dono, cravando, se necessário, os dentes no trapo que lhe cobria as pernas, a corrigir-lhe a trajectória? (...)».

 

(Vd. Os Heróis de Alberto, in Contos do Tempo, ed. DG Edições, 2008).

 

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