Um minhoto na capital
Há dias assim: a gente acorda com essa grata sensação de que as horas são suas. Que pode dispor delas a seu bel-prazer. E, vai daí, nada como agarrar nas pernas e dar-lhes o devido uso. A Costa do Castelo não é o Marão mas, não obstante, o seu declive é acentuado, como frutuoso é o passeio, as ideias que brotam das suas fontes, no caso citadinamente transfiguradas em becos e esquinas falantes.
Estávamos quase no Natal. O frio dos lisboetas é um brinquedo comparado com o nosso: ainda assim, a manhã valia um agasalho. Fui deambulando por aquela toponímia estreitinha mas grandiosa, carregada de alusões à grande Nobreza de antigamente. E dei de caras com ela, descendo a calçada com todas as precauções recomendadas pelos seus saltos de equilibrista. Pareceu agradavelmente surpreendida:
- Olá!!! Então por aqui?! Está melhor?
Confesso, nem me lembrava já. Foi preciso recordar-me o episódio do escadório da Madalena, a minha célebre cena fadista. Oh!, onde isso já ia... Acontecera até reavivarem-se-me na memória pequenos pormenores, estes si, caricaturas preciosas: a mão dela agitando-se, o polegar e o mindinho estendidos,
- E quando se sai a dizer-me que já tinha um namorado?
- O quê? E você?
- Eu felicitei-a e fui acrescentando que, então, nada fazia ali. Pelo que partia...
(Ainda tentou emendar a mão: não tinha, estava em vias de ter - o tal namorado. Insisti nos votos de prosperidade enquanto arrumava a minha trouxa).
- Há cada uma!
Pois há. E nos dias que se seguiram, tendo eu voltado ao Campo das Cebolas, choviam os telefonemas, os recados remetidos por gente amiga, fosse para me chamar doido, fosse para manifestar os seus temores sobre a minha felicidade, uma vez sozinho no mundo... Por fim, a declaração: não ficaria cá muito mais tempo...
- E...
- Nada mais soube. Alguém me disse, já lá vão umas semanas, a vira toda embeijocada e abraçada num pseudo-poeta qualquer.
Um rombo no palácio de um antigo marquês lisboeta, consentia o sol vencesse a resistência das pedras e ganhasse a sua surtida na viela. Encostámos à amurada, mirando o fervilhar da Praça da Figueira, tão lá em baixo, aquelas dezenas e dezenas de telhados em cascata.
- Este casario sempre abrigará cada história, não acha?
Sem dúvida, totalmente de acordo:
- Pode crer. O mundo é uma colecção de desvarios. E você deve ter uma aptidão especial para se esbarrar com eles...
- Pois muito lhe agradeço a profecia!...
- Ora! E qual o problema? Tudo isso são nascentes de inspiração. Que bom jeito lhe dão...