Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 05.12.11

Reencontrámo-nos. Haviam corrido uns meses e ela não deixou de reparar na minha expressão triste, embatucada:

- Então que se passa? Com essa cara de enterro...

Encolhi os ombros e deixei-a subir os degraus do eléctrico. Foram ainda uns tantos minutos de silêncio, sentados lado a lado, até os cães se me soltarem todos:

- Sabe, vivi aí na Madalena, nessas escadinhas, durante uma boa temporada...

Senti a minha confissão despenteá-la toda. Desarranjar-lhe os artefactos faciais. Olhou horrorizada aquelas paredes escarpadas, os varandins, os craveiros, tanta velha desdentada.

- Era ali, naquelas janelas sem estendal... Lá isso, ela não punha a roupa a secar cá fora...

Mirou-me de cima a baixo quase com severidade. A chamar-me tonto, mesmo não perguntando com quem me metera. Mas o saco continuava eu a despejá-lo incontidamente:

- Tinha queda, uma linda voz... Convenceu-me que encarnara em si o verbo amar. Havia de a ouvir cantar o fado...

- E você vai nessas historietas?

 A  verdade é que ia. Digo bem: ia. Mesmo quando o fado e o amor eram já um passado remoto e sobrara apenas a maldicência, uma linguagem desbragada, discussões intermináveis.

- Da última vez atacou selváticamente duas vizinhas, senhoras das minhas relações. Que eram isto e aquilo, mulheres da rua... Saturado de tanta sujidade, levantei-me e despedi-me. Só queria que a visse: uma fera!

A rugir insultos em crescendo ao perceber que a minha decisão era definitiva. Foi quando, para mal dos meus pecados, lhe atirei à cara que as ditas senhoras tinham razão (carradas dela) nas críticas que lhe dirigiam. Então explodiu:

- Já da minha casa para fora!!!

E foi logo pegando nos meus pertences, sem deixar os arrumasse no saco. O casaco de rastos pelo corredor, o Júlio Castilho, a minha preciosa "Lisboa Antiga" espalhada por todos os cantos, eu na aflição de não deixar para trás um único volume...

Caiam-lhe as lágrimas pela cara abaixo de tanto rir.

- Conseguiu vir com tudo, ao menos?

- Sim... quase esquecia a carteira, perdida lá no corredor. E ainda ameaçou chamar a polícia.

E então, como para temperar tanta desgraça, enchemos os dois o eléctrico de um sonora gargalhada, imaginando a polícia irrompendo porta adentro

(-Mãos no ar! Mãos no ar!)

talvez prestimosamente ajudando depois a recolher o Júlio Castilho ou a procurar a minha carteira no breu do corredor.

- Que lhe sirva de emenda!

- Pode crer. E eu repetindo sem cessar: "és tão ordinária! Nunca vi assim alguém tão ordinário!", sem ser ouvido sequer, sempre sob aquela caterva de insultos e dichotes. Safa!