Um minhoto na Capital
Reencontrámo-nos. Haviam corrido uns meses e ela não deixou de reparar na minha expressão triste, embatucada:
- Então que se passa? Com essa cara de enterro...
Encolhi os ombros e deixei-a subir os degraus do eléctrico. Foram ainda uns tantos minutos de silêncio, sentados lado a lado, até os cães se me soltarem todos:
- Sabe, vivi aí na Madalena, nessas escadinhas, durante uma boa temporada...
Senti a minha confissão despenteá-la toda. Desarranjar-lhe os artefactos faciais. Olhou horrorizada aquelas paredes escarpadas, os varandins, os craveiros, tanta velha desdentada.
- Era ali, naquelas janelas sem estendal... Lá isso, ela não punha a roupa a secar cá fora...
Mirou-me de cima a baixo quase com severidade. A chamar-me tonto, mesmo não perguntando com quem me metera. Mas o saco continuava eu a despejá-lo incontidamente:
- Tinha queda, uma linda voz... Convenceu-me que encarnara em si o verbo amar. Havia de a ouvir cantar o fado...
- E você vai nessas historietas?
A verdade é que ia. Digo bem: ia. Mesmo quando o fado e o amor eram já um passado remoto e sobrara apenas a maldicência, uma linguagem desbragada, discussões intermináveis.
- Da última vez atacou selváticamente duas vizinhas, senhoras das minhas relações. Que eram isto e aquilo, mulheres da rua... Saturado de tanta sujidade, levantei-me e despedi-me. Só queria que a visse: uma fera!
A rugir insultos em crescendo ao perceber que a minha decisão era definitiva. Foi quando, para mal dos meus pecados, lhe atirei à cara que as ditas senhoras tinham razão (carradas dela) nas críticas que lhe dirigiam. Então explodiu:
- Já da minha casa para fora!!!
E foi logo pegando nos meus pertences, sem deixar os arrumasse no saco. O casaco de rastos pelo corredor, o Júlio Castilho, a minha preciosa "Lisboa Antiga" espalhada por todos os cantos, eu na aflição de não deixar para trás um único volume...
Caiam-lhe as lágrimas pela cara abaixo de tanto rir.
- Conseguiu vir com tudo, ao menos?
- Sim... quase esquecia a carteira, perdida lá no corredor. E ainda ameaçou chamar a polícia.
E então, como para temperar tanta desgraça, enchemos os dois o eléctrico de um sonora gargalhada, imaginando a polícia irrompendo porta adentro
(-Mãos no ar! Mãos no ar!)
talvez prestimosamente ajudando depois a recolher o Júlio Castilho ou a procurar a minha carteira no breu do corredor.
- Que lhe sirva de emenda!
- Pode crer. E eu repetindo sem cessar: "és tão ordinária! Nunca vi assim alguém tão ordinário!", sem ser ouvido sequer, sempre sob aquela caterva de insultos e dichotes. Safa!