"Lisboa em Camisa"
A loja passava despercebida. Tacanha, fraca de aviamento, parecia existir à medida da balconistazinha. É certo, não faltava ainda o Silvio, o moço de recados, mas a dona (a Mamã da Menina) raramente lá punha os pés.
Sem clientela e naquele espaço recondito, escurecido, esquina esquecida dos transeuntes, não se perdia, porém, a reinação. A Menina conhecia todas as demais por quem nutria um raiva imensa dada a sua condição de absoluto desinteresse. A rapaziada da Baixa olhava para tal bocadito de gente - o taco de pia, como lhe chamavam - encimado por uma cabeleira hirsuta, bochecha descaida, e voltava a cara, enjoada, o emaranhado de ruas era ainda um belo alfobre de Tatões.
De modo que a Menina passava os seus vagares escrevendo cartas anónimas ou mesmo discando números ao telefone - com moderação, não fosse a Mamã dar pela marosca - zurzindo, insultando, caluniando as pretensas rivais. Que já se riam, já todas conheciam a proveniência desses desmandos, só podia ser a Menina...
- Se entretanto não estiver a fazer algum favor ao Sílvio, atrás do balcão...,
acrescentavam, em cada vez maior galhofar.
E se alguém lhe apontava os excessos - de linguagem, a brejeirice, e mesmo o que se sabia suceder do outro lado do balcão, nesses dias em que ela se empiteirava com jeropiga - se alguém lhe lançava alguma nota, ela justificava-se
- Sou muito espanhola...
para logo imaginar ali um namorado, ante a risota geral, um caçador destemido, afamadíssimo...
- Mas quando namoras tu? Nos dias de caça? E que diz a Mamã?,
ao que a Menina redarguia em vernáculo resmungado e voltava costas.
Assim Gervásio Lobato viu a Baixa pombalina desse tempo, a Baixa que hoje vai desaparecendo, não tanto por causa das grandes superfícies, antes devido à falência de cromos como a Menina. Que, acrescente-se, ainda hoje não desistiu de casar.