Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Domingo: perdizes

João-Afonso Machado, 11.09.11

Hoje não foi muito além da porta da casa. Mas em terreno apertado, sujo, dificil. É o diabo para as fazer levantar das beiras dos socalcos ou para lhes fazer o cerco, evitando se refugiem nas matas. Mais a mais, é trabalhoso caçar com três Migueis e uma máquina fotográfica à cinta também. A gente chama um parceiro e o eco vem de todos os lados - "que é?", "que é?", "que é?"; quer-se fazer um bom retrato e falta a terceira mão, essa que não está lá para segurar a espingarda.

Mas algo trouxe, capaz de preencher um almoço. E a pequena desfaz-se em atenções e préstimos, nem tenho de me baixar para apanhar as perdizes caçadas.

E saram-nos todas as feridas da alma estas manhãs entre amigos. Quero dizer, no exacto ponto do espírito onde não há reservas, desconfianças, nem truques, e nos corações reina o sossego e a paz nas consciências. Porque senão, os ditos amigos não estariam lá.

 

Sábado: vindimas

João-Afonso Machado, 10.09.11

Passou a ser uma fatalidade: todos os anos o Pai me mandava acompanhar a vindima de um caseiro e a contagem dos cestos: dois para ele, um para a casa. Com riscos de giz traçados no aro metálico das dornas, para ninguém se enganar. De manhã à noite durante três penosos dias.

Era ainda o tempo das ramadas e do vinho tinto. Os bebés e as crianças de colo acompanhavam a colheita postos numa manta, à sombra, a gente válida lançava as escadas entre os arames, em posição escolhida para alcançar o máximo possivel de cachos. Até descerem, novamente, avançando sempre, ramada adiante, horas a fio, um desespero de trique-triques das tesouras. Cá em baixo, os mais idosos apanhavam do solo os bagos que se desprendiam, tudo pesava, tudo valia. Ainda as calças eram coisa rara nas cachopas, e elas muito esticadas nos degraus, os dedos quase tocando um derradeiro gaipito. Pelo meio, o alarido:

- Então, oh Ser'António!, esses olhos para baixo que é onde estão os bagos! Olhe lá, vocemecê!...

E o velhote não se rendia sem duas brejeirices primeiro, os outros riam, era assim, estavamos quase no Outono mas o sol ainda se fazia sentir e as espigas de milho amareleciam nos campos bordejados pelas ramadas. Até porque as espreitadelas eram também a natureza, nada havia para além dos discretos e dos menos discretos...

Do Destino fazia ainda parte a merenda, pelo cair da tarde. As pataniscas, o naco de broa e as azeitonas, a malga branca que circulava de boca em boca, um tinto carregado, capaz de desentupir qualquer cano. Mas seria uma ofensa uma careta de quem o provasse. Quanto mais não o provar!

O entretenimento possivel, a empurrar as horas para diante, consistia em meter as cestas às costas e levá-las às balsas, mais um risco (mais quantos?) nos seus aros enferrujados.

Era assim.

Entretanto instalaram-se as vinhas e esqueceram-se as escadas, com os bardos ao nosso alcance, prenhes de uva branca. Tudo é mais fácil, sobretudo a digestão dos comeres e beberes da almoçarada. Mas ficou a saudade daquelas tardes quase outonais, cheias de cantares rurais e de moçoilas, desse tempo em que a chuva obedecia às regras e não chegava de véspera. Como hoje não aconteceu.

Longe vai a minha fúria contida ante as ordens do Pai. Não fora ele, não guardaria esta memória de um Minho simples, despoluido e descontraído.

 

O PS está em Braga

João-Afonso Machado, 10.09.11

É mesmo aqui ao lado, quase os ouvimos no pulpito, berrando as suas moções. Braga acolheu os nossos zapateritos para a reunião magna do Partido.

Os congressos, como toda a gente sabe, servem essencialmente para os interessados obterem um tempo de antena grátis, inquestionado e substancial. No fundo, e em bom rigor, para nada mais, sobretudo agora que as eleições internas se processam por votação directa. Vai daí, antecipadamente decorámos já a cartilha, quero dizer, as conclusões de tão importante evento: o PS, o maior partido da Oposição, está sempre, sempre ao lado do povo contra os tenebrosos propósitos neo-liberais do Governo; mais uma pitada de Estado Social e observância q. b. dos acordos com a Troika; e Liberdade, Igualdade e Fraternidade a gosto.

(Assim a vida nacional não pare mesmo e nos reste tempo e saúde - vida - para ainda assistirmos aos congressos do PSD, chegando a sua vez, e ouvirmos mais do mesmo, se possivel com menos fartura de Liberdade-Igualdade-Fraternidade e dispensa de avental).

De modo que a grande, sensacional, novidade proveniente de Braga é o bigodinho de Francisco Assis: estejam atentos, durante os noticiários televisivos. O último personagem histórico que conheço ter adoptado aquele modelo, muito rente ao nariz, chamava-se Adolfo e gozou os seus dias dourados já lá vai meio século. Também ele, à sua maneira, sonhou com uma união europeia, mas com capital decididamente em Berlim. Oxalá Assis, a verificar-se qualquer outra semelhança com Adolfo, defenda afincadamente a solução Amarante para centro do mundo. 

 

 

"Lembras?"

João-Afonso Machado, 09.09.11

Houve desejo, houve palavras

e houve carne feita poesia, noites todas de arquejo,

gritos sem freio

na mudez da maresia.

 

Arranhámos os limites, jamais nos cansámos,

corpo e corpo, um só,

corpo e corpo, o meu e o teu,

sempre mais, sempre mais,

sem início, sem fim, sem dó,

a chorares amor, sentidos, dor

e sorrindo enfim, já no torpor de uma mão escorregadia

 

acenando, o sol nascia…

acenando ao dia

(assim foi, lembras?)

um beijo de alegria.

 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 09.09.11

Vínhamos de regresso. Ela, como sempre, à janela, eu sentado na coxia. Calmaria total, nessa tarde em que Setembro velejava a meio pano, até o eléctrico parar no Miradouro de Santa Luzia. Aí principiou a borrasca.

O sujeito entrou a falar altíssimo, só depois percebi, no fundo para o mundo em geral, incluindo aquela parcela não disposta a escutá-lo. E arreou no banco precisamente à nossa frente, encostado à janela, as pernas esticadas até tolher o corredor. Só então a viu.

- Olá, Nené!

- Olá, 'tá boa?! Por aqui?!

Estava de branco, de cima a baixo. A camisa aberta em excesso, um relógio desproporcionado, como enormes eram os óculos escuros em cujas hastes brilhava um prateado "Ray Ban". E um pivete decerto requintadíssimo, um perfume famoso qualquer despejado no lombo, se ele gostava, enfim, bom proveito, mas (pelo menos na minha terra) não era coisa que se impingisse à paróquia inteira. Mostrava-se indignado, barafustava muito exaltado, inconformado com o azar, o eléctrico, inevitável, horroroso...

(- Esta gentinha toda, sabe?, sem nível...).

Olhei-a nos olhos, que diabo era aquilo?...

- É um cromo...

disse a correr, na aceleração de quem só dispõe de três sílabas para explicar tudo. Enquanto ele gesticulava os Ray Ban entre os dedos, branquinho, como uma noiva imaculada pronta a lançar o ramo às convidadas solteiras. E justificava a sua desdita, o Audi avariara, obrigando-o a apear entre a maralha, uma nojeira...

Então e o taxi, cagão? Sempre nos poupavas... - pensei, volvendo os farois à minha companheira de banco, esbugalhados na expectativa de uma confirmação.

- É sabido em toda a Lisboa...,

arriscou ela somente. Pronto, está bem..., num encolher de ombros já resignado ao espectáculo que principiava a irritar também os restantes passageiros. Restava-nos espaço apenas para o silêncio, afora as sonoras gargalhadas para dentro por mim adivinhadas ao meu lado.

Foi quando a avantesma, levado por ademanes inimagináveis, se pôs a cantarolar: "Young man! Are you listen to me?... YMCA!".

Inaguentável. Decidido a sair, levantei-me e despedi-me.

- Até amanhã! Lembrei-me agora que o filho do Gusto, sabe?, aquele outro imigrante, o ilhéu, passou mal a noite. Parece que foi um ataque de bichas. Vou saber dele...

Ela ria perdidamente. Lançou-me um adeus e - oh, felicidade! - a primeira piscadela de olho a este seu admirador.

 

 

A resistência do "comércio tradicional"

João-Afonso Machado, 07.09.11

A paisagem é conhecida de todos: uma cidade, de pequena ou média dimensão, cercada - sinistramente cercada - das ora denominadas "grandes superfícies". Ou de outras, nem por isso tão grandes. Numa disputa desenfreada, esmagando preços, leiloando (a contrario) os produtos, a ver quem dá menos. E as multidões, famílias inteiras em fato-de-treino, convergindo sábados e domingos rumo a essas miragens.

Entretanto, consequência obvia, no centro das cidades deste modo cercadas, o comércio estagna, definha. E vai morrendo.

À declaração do seu óbito segue-se o desemprego, a insolvência dos fornecedores, o abalo dos serviços. É quando se nota que os fatos-de-treino vão decrescendo em quantidade nas famigeradas "grandes (ou não tão grandes) superfícies".

É assim. Curiosamente, estou eu crer que na Provincia os comerciantes tradicionais se aguentam melhor do que em Lisboa ou no Porto. A explicação provável está nos elos pessoais, em meios menores sempre sólidos e solidários. Porque eu cumprimento de beijo a proprietária da mercearia Lopes & Costa, na minha terra, sempre que lá vou. E permaneço um bocado, depois, comentando com ela o sucesso da última ninhada de cachorros...

 

Sofrimento e revolta

João-Afonso Machado, 06.09.11

Subitamente, num almoço de amigos, a conversa começou a alinhar por trilhos mais sérios. Sofrimento e revolta. Algo tão permanentemente tão perto de nós... Todos os dias os dias presentes, todos os dias ameaçando efeitos terriveis... Quem não sofre?, quem não se revolta?

Quer-me parecer, todavia, realidades - obviamente - diferentes, dimensões sobrepostas, origens díspares, metas antagónicas quantas vezes.

O sofrimento implica a dor. O sacrifício. Corresponde, frequentemente, a uma opção. Um meio de alcançar um fim. Tem (normalmente) a sua compensação, se assim for. Ou, pelo menos, a sua justificação. Em outros casos, é retundantemente involuntário. Ainda então, o sofredor logrará ver a luz ao fundo do túnel, circunstância que o impele a reagir. Enquanto há vida há esperança - diz-se comunmente. O sofrimento é, desta feita, uma faceta da luta pela vida. Menos mal.

Já com a revolta o caldo se afigura completamente entornado. O revoltado sofre, note-se. Mas os seus males advém sobretudo da percepção da injustiça sobre ele pesando, da sua impotência para pôr cobro à mesma, da noção da voz que berra e clama por dignidade e ninguém a ouve.

Em sofrimento pode não existir solidão. Na revolta, ao contrário, o sentimento predominante é o do isolamento do revoltado face ao mundo, seja qual for a circunscrição deste.

Por isso o sofrimento é por regra calado. E a revolta um alvoroço tanto maior quanto o conjunto de revoltados unidos na mesma vontade de aniquilar a mentira e restaurar a verdade. De equilibrar os pratos da balança de Thetis.

São, como disse, circunstâncias do nosso dia-a-dia. Com sonoridade maior no domínio sócio-político, principalmente hoje. Mas sempre constantes na alma de cada um. Em maior ou menor grau. Principalmente quando chegamos à conclusão que o nosso sofrimento foi em vão. Como se rotulassem alguém de fdp e não levassem o troco.

 

Bilhete-postal

João-Afonso Machado, 06.09.11

Olá!

Sei-te muito ocupada e por isso a brevidade destas linhas. No fundo apenas para te confirmar que me decidi a viajar. O medo é muito, confesso, um verdadeiro terror. Estranha destino onde se chega tão depressa, ou tão vagarosamente, vá a gente de avião, de barco ou no comboio... Mas o Rui insiste em que me faça ao caminho. Diz ele, vale a pena. Até porque estarás lá também, lembra sempre o Rui.

Foi isso que me levou a deitar os trapos à mochila. Seja o que Deus quiser. Assim não me perca e chegue aí direitinho.

Depois podiamos dar um passeio àquela praia já fora da época balnear. Lembras-te? Havia silêncio e o marulhar das ondas, apenas, e a nossa conversa uma tarde inteira. Eu gostei, tu sempre recordaste esse momento com saudade.

E pronto. Darei oportunamente notícias. Fico-me por aqui, que o espaço é curto. Um beijo.

PS. Diz-me só se prevês frio e os dias já muito curtos nessa altura. Só para eu me munir de um agasalho. Adeus.

 

TT em V. N. de Famalicão

João-Afonso Machado, 05.09.11

Não acompanhei, porque a minha parança é outra. Mas fui lá depois e informei-me. A associação Amigos do Pedal levou a cabo na Quinta do Outeirinho, no Louro, V. N. de Famalicão, uma primeira edição das 24 horas a dar ao pé em cima da bicicleta.

É muito tempo. Ainda se fosse a correr atrás de perdizes sempre a levantar... Enfim, cada qual, cada gosto. O importante é que a adesão foi enorme. A prova teve o seu início às 15 horas de sábado e concluiu no domingo, perfeita a trasladação térrea. Uma tarde, uma noite, uma manhã a pedalar em bicicletas TT. Num circuito com a extensão de cerca de 8 km.

Parece-me oportuno divulgar a iniciativa. Os custos foram baixos. A participação significativa. O apoio da edilidade também. Do que recolhi, a assistência muita e atenta. Ninguém morreu. Muitos hão-de ter feito pela saúde própria. Os restaurantes da zona ganharam o dia.

E a Economia do País constroi-se assim.