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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Parque Biológico de Gaia

João-Afonso Machado, 25.09.11

Nessa tarde calma de sábado, os alfaiates resolveram reunir em convenção, como acontece a todas as horas e minutos, todos os dias. Foi em Avintes, algures no percurso de 3 kms do Parque Biológico. Nessa estranha confluência dos tempos e dos espaços e dos mundos, desde as cabras anãs até aos ressuscitados bisontes europeus. Com paragem na quintinha que nos vai no coração, na sua horta, nos seus milheiras, na azenha ou nos lagares.

Eu leria um livro inteiro, escutando o animado diálogo siliencioso dos alfaiates. Sentado num banco, sempre atento ao seu ar circunspecto e corporativo. Ou então junto ao lago dos anatídeos, a aguardar o voo de qualquer pato-real, preso às cores dos zarros, dos trombeteiros, dos arrábios.

Atravessámos pinhais, carvalhais e o sonho de exóticas borboletas. Longuissíma viagem, o Febros um dia será rio e vida outra vez. Nas mãos, à chegada, o aroma remoto da planta de caril.

Vão lá e tragam também tão grande viagem na alma e nos sentidos.

 

Legislando de má-fé

João-Afonso Machado, 24.09.11

Assim não vamos lá. Isto de reformar por reformar dá sempre em nada e alguma esperança subsistia de que o novo Governo - se mais não fosse, observando experiências passadas - revelasse maior realismo, menos demagogia. Mas não, pelo que se constata.

A questão tem a ver com a actuação do Ministério da Justiça. Concretamente com a anunciada inovação legislativa - punitiva dos advogados e pretensamente mais exigente no domínio da litigância de má-fé. Isto é - conferindo poderes aos magistrados para multar os causídicos (em valores cifrados entre os 200 e os 10.000 euros!) vislumbrando da parte destes qualquer propósito dilatório, falseante ou abusivo.

Refira-se que a condenação dos profissionais do foro por litigância de má-fé estava já prevista na lei processual civil, restringida às questões puramente de Direito.

Doravante, um advogado, contactado para intentar determinada acção, terá de pensar não apenas nos interesses do cliente mas também nos seus. Estará a arriscar demais? Será que a versão do constituinte é credível? O que dirá o juiz?

E o consulente, confrontado com a sua hesitação, procurará provávelmente advogado mais afoito... Encontrá-lo-á, porventura, a preços inflaccionados pelo risco assumido...

Depois competirá ao julgador avaliar. Na certeza de que se optar pela dissuasora medida da multa por litigância de má-fé... aí vêm o inconformismo e os recursos a sobrecarregar os tribunais, esvaziando de sentido o propalado objectivo da novidade - desentusiasmar a beligerância, aliviar o serviço da Justiça.

Em suma e boa verdade: a caça à multa também já chegou à barra. O Estado inventa cada uma, para se financiar!

 

Um pouco de pesca

João-Afonso Machado, 23.09.11

Ela não pescava - rebocava carpas esfaimadas munida de equipamento de enorme calibre, uma autêntica grua. A lagoa transformara-se na antecâmara de uma cozinha, a todo o momento podia ocorrer a limpeza das entranhas, o amanho do peixe, a frigideira ou a assadeira. E eu em passeio, desconhecendo o potencial daquelas águas...

Sentei-me num penedo, pescando em pensamento. Um caniço de carbono, 4 metros de comprimento, calculei, um carreto pequeno a desbobinar nylon em vez de uma corda de alpinista... Mais uma boia de bálsamo, sensivel ao menor toque, dois grãos de milho a esconder o anzol...

Lançamento feito, a picadela, o esticão da praxe e o peixe cravado, a cana já em arco e a certeza de que à bruta, fosse carpa, fosse truta, lá se ia tudo embora. Toca a dar linha, deixá-lo cansar-se, só um pouco mais de freio, cautela nas voltas da manivela...

Alto - que o bicho recuperou forças! Abre o carreto outra vez, é mais uma corrida para o largo. Muito bem! Agora puxa, a resistência já não é a mesma... Isso, ei-lo a revoltear-se quase à superfície, vê-lo? Atenção, ainda lhe restarão bofes para a derradeira fuga. Eu não disse? Não te precipites, mantém só a linha tensa, ele vai afundar, está esgotado. Olha aí, o anzol não se descrave...

Pronto!, começa a recuperar fio. Mas devagarinho, a cana a meia altura. Encalha-o nas pedras da margem, a boca fora de água. E apanha-o à mão, segura-o pela guelra, bem firme. Não tenhas medo, não morde. É carpa, não é? Então deita fora. Só espinhas e insipidez... Deixa-a crescer. Para o ano será outra, em tamanho e desconfiança. Mas virá ao anzol, muito mais combativa.

 

É vê-los e aprender com eles

João-Afonso Machado, 22.09.11

O mundo é deles, não tenhamos nós qualquer pretensão de propriedade. Vivem sem pedir licença, desconhecem barreiras, passeiam descontraidos entre muros e telhados. E dormem a sesta, gozosamente, seja no sofá, seja no capot aquecido pelo sol, ou ainda não esfriado do motor, no automóvel estacionado mais a jeito.

Uma espreguiçadela, a boca aberta, um olhar ausente - e, de um pulo só, o pardalito distraido bem cravado entre os seus dentes. O sono invencivel, aquela moleza, eram apenas uma miragem.

Cortejados pelas viúvas idosas, sapateando sonsamente a miudagem maçadora que os quer no colo, são uma lição de vida. Como eles, a alma ronrona de paz e a liberdade é felina.

 

Ironias da República

João-Afonso Machado, 22.09.11

É uma história antiga e sinistra. Encapuçada. A vir ao de cima, de quando em vez, sempre inconsequente.

Corriam os Anos 30 do século passado. Artur Carlos Barros Basto, oficial do Exército português com a patente de capitão, era judeu de sangue e religião. A ele -  director do Instituto Teológico Israelita - se deve a construção da sinagoga portuense, na Rua Guerra Junqueiro. Então. Assunto delicado, a República salazarista nunca primou pela maleabilidade e as intrigas não tardaram a vir à tona...

Abreviando caminhos, Barros Basto foi vítima de diversas denúncias anónimas e acusado de homossexualidade. Conquanto tal nunca fosse provado (nem, tão-pouco, os alegados abusos perpetrados na pessoa de pupilos seus), o Exército expulsou-o das suas fileiras, em 1937, sem direito a reforma. Morreu na miséria, em 1961.

Sobreveio a Revolução de Abril. A viúva de Barros Basto ainda instou o Presidente da República, Costa Gomes, rogando justiça à sua memória, posto tudo resultar apenas de perseguição política a um praticante da religião judaica. O Estado-Maior General das Forças Armadas pronunciou-se: tal pretensão era absolutamente destituida de fundamento legal... Ou seja - negou-lhe a reabilitação moral e a sua reintegração póstuma no Exército.

Os anos foram correndo. Já na geração dos seus netos, a derradeira tentativa aconteceu durante o mandato presidencial de Jorge Sampaio. Parece que houve promessas de resolução, esclarecimento, da questão. Mais nada - promessas apenas. Até hoje.

Por isso, o assunto permanece na ordem do dia. Muito concretamente, em Trancoso, onde se realiza o Festival da Memória Sefardita, neste ano centésimo primeiro da República Portuguesa...

 

 

 

Raças nobres

João-Afonso Machado, 21.09.11

Aconteceu, eu estava lá e vi. Ou melhor: ouvi. Nem mais do que a longa dissertação de um distinto cavalheiro acerca da superioridade da etnia branca. Isto no decurso de uma bacalhauzada memorável em que não percebo onde o perorante descobriu o exemplo utilizado para ilustrar a sua tese.

- Olhe lá você as galinhas! Então não é que as maiores, as mais numerosas e mais vendidas, não são todas brancas?

Estarreci. Em vez do cavalo do Napoleão, celebérrimo e albino, o arguente, ainda por cima, lançava-me ao prato não outra posta do fiel amigo, mas essa espinha mais: as galinhas de aviário! Enquanto a nobre raça portuguesa (dolicocéfala) se esforça, em feiras, em concursos, em restaurantes, por recuperar os tradicicionais galinácios lusitanos.

Essa a actual aposta da Madre. Criar, apurar as pedrezes, as peladas, futuramente as pretas. Todas de saudosa memória.

 Naturalmente não por puro espírito coleccionista... Há interessados, é um negócio como outro qualquer. Mais ovos e melhor carne, em suma. Os tempos vão dificeis para toda a gente e todas as iniciativas valem. Afinal, a Madre tem mais quinhentos anos do que esta desvastadora República e, desejávelmente, há-de viver mais do que a "tais" outros tantos. Até quando for declarada extinta a raça branca das galinhas de aviário.

 

 

Personalidades

João-Afonso Machado, 21.09.11

Já passeamos juntos. Longas caminhadas lado a lado em que lhes vou apanhando o jeito. Ele é mais confiante, ela muito tímida. Tudo visto, deu em brincadeira e alguma distância, por parte do Pêro; e meiguice total da Tareja, assim que descobriu para que servem as orelhas - para levarem festas e serem coçadas.

 

 

Uma dívida não tão escandalosa

João-Afonso Machado, 19.09.11

O lado oculto da dívida madeirense é, de facto, o mais feio da história toda. É mesmo muito dinheiro, um rombo daqueles, e o nosso pobre Portugalito no estado em que sabemos... Uma surpresa (pelo menos para o cidadão comum, creio) a dificultar sobremaneira os esforços necessários para evitar a septicémia, que é como quem diz, o colapso financeiro nacional.

E, no entanto, Alberto João - descobrimos, enfim, o Embuçado - não consta haja empochado exorbitâncias. O escandalo, verdade verdadinha, não há meio de surgir. Na Madeira existe défice democrático, existe, no plano dos dinheiros, um passivo monumental, existe isso tudo menos os Freeports e as Luvas Brancas de cá. 

Ao invés, parece que se multiplicaram as redes viárias e os hospitais excelentemente dotados de tecnologia de ponta. Daí, segundo a Imprensa, a famigerada e problemática dívida. Valha-nos isso. Provávelmente a ela devem muitos madeirenses, cont'nentais ou turistas a sua própria vida. Quando, acometidos de doença complicada, chegaram a tempo e horas a estabelecimento de saúde à altura dos seus pergaminhos e propósitos.

 

 

"Alado"

João-Afonso Machado, 19.09.11

Nas asas da cegonha

viajo o esquecimento,

sobrevoo o tormento

 

e rumo o sul.

Ao longo de lágrimas

sem o frio da vergonha,

ao longo do cais

mil vezes azul

de águas e neblina

 

da minha cegonha,

 

depois das mágoas,

voando, planando,

de colina em colina.

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.09.11

Em plena Rua da Conceição, ainda não não sossegara a minha admiração. Aliás: valente susto o meu! Aquele aglomerado de gente, vozes sonantes, até alguns atropelos... Sempre a mesma coisa - pensei - cada vez que um velhinho sofre uma síncope. Raios partam os mirones!

Mas não, percebi depois, tal altercação desenhava vagamente os contornos de uma fila de espera. E quem entrava no estabelecimento, de resto tamanino, pouco se demorava e voltava à rua feliz, empunhando triunfalmente um sorvete lambido com ferocidade.

Ainda me ocorreu parar, encher-me de paciência, aguardar a minha vez... Mas logo sapateei as orelhas, era o que faltava, tanta maçada só por causa de um gelado! E abalei. Sem rumo e sem pressa em rumar.

Cá em baixo, quase à Madalena, dei de caras com ela na paragem. Sempre ela!, depois desse silêncio de lojas encerradas, muito já cobertas pelo véu espesso das teias de aranha.

(Porque será que os lisboetas ligam tão pouco à sua cidade? Apeteceu-me até mandá-los a Barcelos, à feira, ver o que aquilo é de galegos e outros forasteiros e de cores garridas. Enfim...).

Qual não foi o meu espanto, roía os últimos bocados de baunilha, os dedinhos muito esticados, a fugir do polegar e do indicador que brilhavam, escorriam creme.

Cumprimentámo-nos com a cerimónia do costume. Respondendo à curiosidade dos meus olhos, um telegrama apenas:

- Santini. Os melhores do mundo. Chocolate, baunilha, nozes, avelãs..

- Ah! Então é como em Itália?!

Não foi caso de engasganço, mas seguramente não esperava tanta sapiência. Com direito a suspensão do movimento maxilar.

- É, nunca vi lá melhor. E aqui... o Santini...

Pois, adiantei. Também na minha terra a Santinha (a nossa padeira) colectava um corredor de clientes das suas roscas de pão, depois da missa do meio-dia em S. Tiago de Gavião. Na sua furgonete, de porta alçada para a freguesia. Felizmente, as minhas irmãs dispunham-se a um lugar no compasso. Cá por mim, antes a broa de milho do que tanta seca...

Li uma fúria na sua expressão. Arrependi-me de não ter ficado calado. Porque nunca a ouvira dizer-se sem pachorra para esperar o eléctrico e marchar de seguida, sem um adeus sequer.