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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Lembras?"

João-Afonso Machado, 09.09.11

Houve desejo, houve palavras

e houve carne feita poesia, noites todas de arquejo,

gritos sem freio

na mudez da maresia.

 

Arranhámos os limites, jamais nos cansámos,

corpo e corpo, um só,

corpo e corpo, o meu e o teu,

sempre mais, sempre mais,

sem início, sem fim, sem dó,

a chorares amor, sentidos, dor

e sorrindo enfim, já no torpor de uma mão escorregadia

 

acenando, o sol nascia…

acenando ao dia

(assim foi, lembras?)

um beijo de alegria.

 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 09.09.11

Vínhamos de regresso. Ela, como sempre, à janela, eu sentado na coxia. Calmaria total, nessa tarde em que Setembro velejava a meio pano, até o eléctrico parar no Miradouro de Santa Luzia. Aí principiou a borrasca.

O sujeito entrou a falar altíssimo, só depois percebi, no fundo para o mundo em geral, incluindo aquela parcela não disposta a escutá-lo. E arreou no banco precisamente à nossa frente, encostado à janela, as pernas esticadas até tolher o corredor. Só então a viu.

- Olá, Nené!

- Olá, 'tá boa?! Por aqui?!

Estava de branco, de cima a baixo. A camisa aberta em excesso, um relógio desproporcionado, como enormes eram os óculos escuros em cujas hastes brilhava um prateado "Ray Ban". E um pivete decerto requintadíssimo, um perfume famoso qualquer despejado no lombo, se ele gostava, enfim, bom proveito, mas (pelo menos na minha terra) não era coisa que se impingisse à paróquia inteira. Mostrava-se indignado, barafustava muito exaltado, inconformado com o azar, o eléctrico, inevitável, horroroso...

(- Esta gentinha toda, sabe?, sem nível...).

Olhei-a nos olhos, que diabo era aquilo?...

- É um cromo...

disse a correr, na aceleração de quem só dispõe de três sílabas para explicar tudo. Enquanto ele gesticulava os Ray Ban entre os dedos, branquinho, como uma noiva imaculada pronta a lançar o ramo às convidadas solteiras. E justificava a sua desdita, o Audi avariara, obrigando-o a apear entre a maralha, uma nojeira...

Então e o taxi, cagão? Sempre nos poupavas... - pensei, volvendo os farois à minha companheira de banco, esbugalhados na expectativa de uma confirmação.

- É sabido em toda a Lisboa...,

arriscou ela somente. Pronto, está bem..., num encolher de ombros já resignado ao espectáculo que principiava a irritar também os restantes passageiros. Restava-nos espaço apenas para o silêncio, afora as sonoras gargalhadas para dentro por mim adivinhadas ao meu lado.

Foi quando a avantesma, levado por ademanes inimagináveis, se pôs a cantarolar: "Young man! Are you listen to me?... YMCA!".

Inaguentável. Decidido a sair, levantei-me e despedi-me.

- Até amanhã! Lembrei-me agora que o filho do Gusto, sabe?, aquele outro imigrante, o ilhéu, passou mal a noite. Parece que foi um ataque de bichas. Vou saber dele...

Ela ria perdidamente. Lançou-me um adeus e - oh, felicidade! - a primeira piscadela de olho a este seu admirador.