Um minhoto na Capital
Tão recentemente instalado em Lisboa, ainda mal digerindo a sua constante agitação, desculpar-se-á o esquecimento: a narrativa das curiosas circunstâncias em que a conheci. Justamente nessa paragem do eléctrico, dois dias depois da minha chegada e do quarto (limpinho, muito limpinho) prontamente descoberto ali ao Campo das Cebolas.
Foi o tempo de um passeio no Jardim Zoológico. Com todos os matadores, excepto essa tolice do teleférico, onde volta e meia se fica imobilizado, à chuva e ao frio ou à torreira do sol, quando, em alternativa, não se arrisca um salto e uma perna partida ou uma cornada de búfalo. E que diferença, meu Deus!, a bicharada, as diversões - todo um mundo novo, inimaginável nos meus dez anitos. Porque nunca mais voltara ao Jardim Zoológico. Nem ao Castelo de S. Jorge e à sua abundância de pavões, onde decidi prosseguir a minha romagem ao Passado. Sofri então, em plena Rua Augusta, um súbito acesso de moleza, a visão do eléctrico logo ali... Era inverno, os dias curtos... Enfim, estaquei na paragem, vociferava ela a favor dos direitos dos animais.
Que era uma maldade, deviam proibir o cativeiro, as jaulas, as cercas, as gaiolas, essa imundice toda! Pobres bichos, tão mais dignos de liberdade do que a gente! E a amiga (só podia ser uma amiga) ouvindo-a, acenando "sim" com a cabeça, repetidamente acenando "sim", enquanto eu escorregava pela samarra dentro, a ver se a oração me passava ao lado.
Mas não. Ao dar pela minha presença, olhou com desprezo, os alentejanos são altos, tisnados pelo sol, crespos e patilhudos - deve ter pensado, ao reparar no meu cabelo branco, na minha barba ainda mais branca, na minha estatura meã. E, conforme temia, virou o discurso na minha direcção também.
Sucede que era linda. Lindíssima. Resplandescentemente bonita. Tanto que ainda agora sou incapaz de a descrever. E, assim sendo, não voltei as costas à sabatina, aliás quando principiava o capítulo dos assassinatos a tiro. Fácil de perceber na contundência de termos contra os matadores de cervos, muflões, javalis...
(Havia de ver quantos ficaram na última montaria em Tabuaço... - quase me fugiu pela boca fora. Que disparate!, logo me repreendi com severidade: queres espantar a caça ou quê? - usando este falar labrego, mas, diabos me levem!, beleza e elegância deste quilate, nem uma gazela, nem duas vezes na vida...).
De forma que fui ouvindo. Humildemente ouvindo, apenas. Com um olhar de pobre, titubeante, até o fixar - o olhar - na sua carteira castanho-esverdeada, a tiracolo. A rebrilhar de escamas, sissiando no contacto com o casaco, serpenteante. É, é... Belo pedaço de jiboia, hã?! Uma pequena fortuna, em qualquer loja de acessórios femininos, na Baixa... Ou mesmo na estranja.
Ela percebeu. A sua argúcia condizia com a facilidade do seu verbo. E o eléctrico dobrara a curva, parou a um sinal meu. Dei-lhe a primazia nos degraus, enquanto aliviava o pescoço da gola de raposa da samarra. A viagem prosseguiu, o pêlo de mamífero muito junto do nariz da dona da pele de réptil. O eléctrico, essa tarde, ia a rebentar pelas costuras.