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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

A cidade hoje

João-Afonso Machado, 16.07.11

Nunca fui comerciante e são nulas as hipóteses de viver essa aventura. Não me está na alma, nunca esteve, comprar por um preço e vender por outro, mais elevado, subsistindo à custa desse diferencial. Por isso, sequer averiguei, alguma vez, a margem garantida ao dono do pronto-a-vestir, quando adquire a "colecção" na perspectiva de que os clientes a vão escoando no curso da "época".

Constato, apenas, que a dita "época" se vem tornando progressivamente mais curta. Que, num ápice, estão aí as "promoções" e os "saldos". E que a freguesia, adivinhando essas marés mais suaves, não compra logo e espera. Enquanto o comércio desespera.

Os ganhos haviam de ser, outrora, fatalmente gordos. Mesmo na recta final - a do desbarato dos "saldos" - ainda aí, decerto não se verificariam perdas. Somente menos encaixe.

Hoje não é assim. E impressiona o número imenso dos estabelecimentos todos os dias a encerrar, por todo o País, significativamente nas maiores cidades. Para gáudio dos especialistas no grafitti. E dos amigos do alheio, quais abutres pairando sobre as zonas menos movimentadas da urbe. Com a desastrosa cadeia de sucessos que se adivinha, atingindo os serviços, o turismo, a segurança dos cidadãos, a higiene citadina, em suma.

É o nosso quotidiano. O reverso da medalha gravada no ouro dos ovos dos galináceos a que usualmente se chama "grandes superfícies".

Entretanto, nos espaços vazios dos grandes centros urbanos, ávidos de rendas, de algo que, pura e simplesmente, sustenha a ruína, outras formas de negócio despertam. Desde as bugigangas chinesas às casas de penhor, passando pela treta esotérica. Agora vendida em pacotinhos ou em livros de bolso. Já nem sequer com o aliciante da clandestinidade - ou mesmo da ilicitude - de um Prof. Karamba qualquer.

Como inverter este estado de coisas?

Negócios de Estado

João-Afonso Machado, 16.07.11

Meu Caro Zé Diogo:

Aqui te envio, satisfazendo o teu pedido, o retrato a óleo da princesa que te é destinada.

Conforme a sonhaste: trigueirinha, tímida mas curiosa, brincalhona e criativa.

Saberás recebê-la condignamente no teu palacete à Avenida de Roma. E rodeá-la-ás de serventuários, como a sua condição exige - as tuas gatas, os peixes do aquário, as tartarugas e os periquitos (a quem imporás - aos periquitos - , com certeza, pouca estridência...).

Não esqueças, a donzela gosta de natureza, não prescinde do seu passeio diário. Eu recomendaria, para o efeito, a Avenida da Igreja, mais arborizada, com mistério e aventura. Ela adora emoções assim. E, quem sabe, a bondade divina não planta galinholas entre as frondosas copas desse quase bosque? Seria uma alegria imensa, inesquecível, para a querida Princesa, que o Senhor guarde e proteja.

Competir-te-á ainda dar-lhe um nome, um título. Por quem és, nada de possidoneiras! Tens contigo a fina-flor das estirpes caninas minhotas. Nascida, afinal, no berço onde também Portugal conheceu a luz do mundo. Só isso.

Por último, a Princesa solicita um coche, transporte condizente com o seu estatuto, para a longa viagem que a conduzirá à Capital.

Creio ser tudo. Na expectativa de que assim se reforçarão os laços diplomáticos e políticos entre as nossas amadas nações, daqui te envio um abraço, sinal da velha amizade do

João Afonso

 

P.S. Se levares a Princesa para Vila do Conde, agasalha-a bem. Nada de pneumonias...

 

 

A noite, o dia e toda a gente (3)

João-Afonso Machado, 16.07.11

- Olhe, Sr. Dr.! Só lhe posso dizer que essa história e essa gente toda já começam a incomodar-me!

Prestes a levantar-se da cadeira, parecia esquecer as distâncias devidas, a parcimónia, o fosso por aquela mesa cavado entre o patrão e o empregado. Tornava-se necessário lançar alguma água sobre a fervura.

- Homem! Tenha calma, que diabo! Em nada tenho a ver com a sua vida. Não posso é ignorar o que diariamente cai em cima deste tampo…

- Como assim?

Nem lhe passava… Bilhetinhos, queixinhas… Comentários preocupados, solidários, minuciosos. E, num encolher de ombros franco, amigo:

- Sabe como são as mulheres, não sabe?

Entravam ali, em alertas compungidos, a gritaria ouvia-se fora do gabinete dos dois

(- E você sempre agressivo, ameaçador…),

e ela, ao que diziam, andava triste, quase improdutiva. Emagrecera – o que, aliás, pudera confirmar – já não conseguia disfarçar as olheiras…

- E, pelos vistos, entretém-se a contar o seu drama a todo o pessoal…

Sim, tudo indicava que sim. Mas isso era de somenos importância. Mesmo os seus pedidos, excentricidades autênticas, não mereciam ser levados em conta. Percebia-se, sentia-se, estava manifestamente descompensada, mesmo necessitada de apoio psicológico, atarantada.

- Não, homem, isso é problema dela. A seu tempo se verá. A mim o que interessa é o ambiente nesta casa.

- No que eu puder contribuir…,

Saiu-lhe de supetão, conforme lhe apetecia desandar porta fora. Depois caiu em si. Convinha evitar os sarcasmos, até porque não estava sendo vítima de grandes padecimentos. A conversa, sobremaneira desagradável, era conduzida aceitavelmente e o Sr. Dr. espreitava-o agora, insinuando uma derradeira oportunidade de se entenderem.

- Bom, vamos lá ver, então. As férias estão aí, o momento é ideal para umas mudanças, uns ajustamentos…

As férias!... A alusão chutou-o no tempo, quase um ano atrás. Tinham decidido ir juntos à confraternização de judocas. Muito no interior, semi-acampados naquele belíssimo rio, o fundo pedregoso, o açude, o bosque… E o areão, a margem onde se aqueciam ao sol antes de mergulharem nas águas frias, sempre corredoras, transparentes. Era assim, há já muitos verões. Sempre com os seus parceiros de desporto, praticantes em diversos clubes de judo, o “congresso” como chamavam a essa inesquecível semana de caminhadas, repouso e convívio. E treino… Pois… Em má hora decidiu levá-la, só à conta do treino! Bastava tocar a reunir para o treino… Escolher os adversários no treino… E no treino combater, na praiazita junto às águas espertas onde por vezes se enfiavam com quimono e tudo. Então quando exercitavam as técnicas de imobilização…, no chão…, não sendo o treino entre eles por cima deles…, sendo o treino elas por cima deles ou eles por cima delas…

- Porque eu não estou para assistir a enrolanços, à minha frente, a gozar com a minha cara!,

ouvia ainda berrar, quase um ano depois. Tal fora a histeria…

-  Homem, desça à terra! Acorde!

- Desculpe, Sr. Dr.,

solavanqueou, ajeitando-se no assento. Assim deixara de praticar com uma das nossas melhores atletas, segundo dan e três vezes medalhada de prata no estrangeiro. Que sina, a sua! Mas tinha pela frente, agora, outra peleja...

- Dizia o Sr. Dr., tencionava aproveitar as férias…

- … para criar meios de serenar os ânimos.

A ideia era simples. Acima de tudo, urgia previlegiar a discrição. Jamais o burburinho das secretárias, dos arquivadores, das estantes nos corredores, de gabinete para gabinete. Aguardasse-se a debandada geral, já iminente. A mudança seria então. E no regresso ao trabalho, descontando a surdina dos inevitáveis comentários (sabia-se de quem…), rapidamente a rotina seria retomada.

- Por mim, nada em contrário, Sr. Dr.

(Conquanto não repetisse férias como aquelas, em que acabara inventando uma luxação qualquer para fugir ao ridículo de explicar aos parceiros a namorada não o deixava lutar com mulheres…).