- Olhe, Sr. Dr.! Só lhe posso dizer que essa história e essa gente toda já começam a incomodar-me!
Prestes a levantar-se da cadeira, parecia esquecer as distâncias devidas, a parcimónia, o fosso por aquela mesa cavado entre o patrão e o empregado. Tornava-se necessário lançar alguma água sobre a fervura.
- Homem! Tenha calma, que diabo! Em nada tenho a ver com a sua vida. Não posso é ignorar o que diariamente cai em cima deste tampo…
- Como assim?
Nem lhe passava… Bilhetinhos, queixinhas… Comentários preocupados, solidários, minuciosos. E, num encolher de ombros franco, amigo:
- Sabe como são as mulheres, não sabe?
Entravam ali, em alertas compungidos, a gritaria ouvia-se fora do gabinete dos dois
(- E você sempre agressivo, ameaçador…),
e ela, ao que diziam, andava triste, quase improdutiva. Emagrecera – o que, aliás, pudera confirmar – já não conseguia disfarçar as olheiras…
- E, pelos vistos, entretém-se a contar o seu drama a todo o pessoal…
Sim, tudo indicava que sim. Mas isso era de somenos importância. Mesmo os seus pedidos, excentricidades autênticas, não mereciam ser levados em conta. Percebia-se, sentia-se, estava manifestamente descompensada, mesmo necessitada de apoio psicológico, atarantada.
- Não, homem, isso é problema dela. A seu tempo se verá. A mim o que interessa é o ambiente nesta casa.
- No que eu puder contribuir…,
Saiu-lhe de supetão, conforme lhe apetecia desandar porta fora. Depois caiu em si. Convinha evitar os sarcasmos, até porque não estava sendo vítima de grandes padecimentos. A conversa, sobremaneira desagradável, era conduzida aceitavelmente e o Sr. Dr. espreitava-o agora, insinuando uma derradeira oportunidade de se entenderem.
- Bom, vamos lá ver, então. As férias estão aí, o momento é ideal para umas mudanças, uns ajustamentos…
As férias!... A alusão chutou-o no tempo, quase um ano atrás. Tinham decidido ir juntos à confraternização de judocas. Muito no interior, semi-acampados naquele belíssimo rio, o fundo pedregoso, o açude, o bosque… E o areão, a margem onde se aqueciam ao sol antes de mergulharem nas águas frias, sempre corredoras, transparentes. Era assim, há já muitos verões. Sempre com os seus parceiros de desporto, praticantes em diversos clubes de judo, o “congresso” como chamavam a essa inesquecível semana de caminhadas, repouso e convívio. E treino… Pois… Em má hora decidiu levá-la, só à conta do treino! Bastava tocar a reunir para o treino… Escolher os adversários no treino… E no treino combater, na praiazita junto às águas espertas onde por vezes se enfiavam com quimono e tudo. Então quando exercitavam as técnicas de imobilização…, no chão…, não sendo o treino entre eles por cima deles…, sendo o treino elas por cima deles ou eles por cima delas…
- Porque eu não estou para assistir a enrolanços, à minha frente, a gozar com a minha cara!,
ouvia ainda berrar, quase um ano depois. Tal fora a histeria…
- Homem, desça à terra! Acorde!
- Desculpe, Sr. Dr.,
solavanqueou, ajeitando-se no assento. Assim deixara de praticar com uma das nossas melhores atletas, segundo dan e três vezes medalhada de prata no estrangeiro. Que sina, a sua! Mas tinha pela frente, agora, outra peleja...
- Dizia o Sr. Dr., tencionava aproveitar as férias…
- … para criar meios de serenar os ânimos.
A ideia era simples. Acima de tudo, urgia previlegiar a discrição. Jamais o burburinho das secretárias, dos arquivadores, das estantes nos corredores, de gabinete para gabinete. Aguardasse-se a debandada geral, já iminente. A mudança seria então. E no regresso ao trabalho, descontando a surdina dos inevitáveis comentários (sabia-se de quem…), rapidamente a rotina seria retomada.
- Por mim, nada em contrário, Sr. Dr.
(Conquanto não repetisse férias como aquelas, em que acabara inventando uma luxação qualquer para fugir ao ridículo de explicar aos parceiros a namorada não o deixava lutar com mulheres…).