Fora sempre assim. As suas interrogações, satisfizesse-as ele, querendo. Como não fosse da mais curial educação um esclarecimento, o conforto de uma frase com princípio, meio e fim. Uma base sólida, um ponto de partida, uma nesga de coerência, já agora. Qualquer certeza perdurando minimamente no tempo. Enfim, tudo o que aquele ser privilegiado exigia para si e recusava aos outros. Usualmente com um olhar translúcido, insondável, de poetisa extasiada.
De pensares largados à solta a toda a medida da janela, parecia não ver nem ouvir o trânsito automóvel na rua. Acordou-o um toque rápido, contundente, na ainda tremelicante porta do gabinete. A colega nova, recém-admitida, informava-o de que o Sr. Dr. o chamava.
- Obrigado, vou já…
E uma vez mais estranhou-lhe o sorriso aloirado, mesmo a presença da… (como se chamava a rapariga?...) em mostra permanente da sua dentição, farta cabeleira, bamboleante, agora muito íntima dela, a sua confidente, juraria. Como tantas outras, ainda há pouco mantidas a uma distância púdica e ostensiva – a distância conveniente ao rígido papel então representado, o da mulher casada e bem casada.
II
A romagem àquela sala ampla da Direcção era tudo menos entusiasmante. Pelo menos para quase todos… A mesa ao fundo, desarrumada, povoada de pisa-papeis, memorandos e canetas de boa marca, uma cadeira aparentada com os tronos reais e a estante monumental, repositório de diplomas, medalhas comemorativas, fieiras de livros que o tempo ia comendo pelo desuso. Sobrelevavam no espaço a severidade e o anacronismo das bibliotecas monásticas, o sussurro de quem chegasse, receoso, sem coragem para apontar teias de aranha. Mesmo porque o privilégio das críticas cabia em pleno ao Sr. Dr. Um homem seco, mais para o baixito, sexagenário avançado. Raramente largando o seu covil, o dito cadeirão de reinante. Era lendária a sua voz cava, ponderosa, um labirinto de entrelinhas. Sempre impecavelmente apresentado – o blazer, a gravata, o lencinho… – imaculadamente inteligente e imprevisível – sempre! – conquanto pouco dado à injustiça. Ainda assim, inquisidor até ao susto.
Um breve espanejar de olhos foi a ordem para se aproximar, e o silêncio continuado o sinal de que vinha aí tema grave, contundente.
- Então essa inspiração?,
ouviu enfim, enquanto o mirava nos olhos, fazendo jus ao galardão que o posicionava no restrito escol dos não impressionáveis. Nem foi além de um comedido acenar da cabeça.
- A escrita em dia?
- Sim, creio que sim…,
em tom de quem aconselha – desembuche, ande lá. E os segundos seguintes, nessa espécie de “jogo do sério”, cessaram com o Sr. Dr. bufando profundamente. Não valia a pena, este não tremia das pernas…
- Pois é, meu caro. Creio que temos de avançar para algumas remodelações. Isto assim não pode continuar…
Arqueou as sobrancelhas, simulando surpresa. Um quase imperceptível esgar do seu interlocutor valia apreço pelo seu sangue-frio, à mistura com recados de moderação. Não arriscasse em demasia…
- Sejamos claros: está na altura de mudar de gabinete. Decerto não discordará…
- E porquê, Sr. Dr.?,
interrompeu sem perder o seu baixo timbre de voz, os faróis direccionados. Ora porquê!!! Porque uma empresa inteira sentia e lhe transmitia o pesado ambiente, notoriamente maléfico, que dela se apoderava. Com motivos bem à vista…
- Desde que você anda às turras com a sua mulher… enfim, com a sua namorada, toda a gente…
Já não logrou segurar um gesto rasgado de enfado. Saturação total. Toda a gente! Sim, toda a gente, até a morenaça da página literária, quase uma desconhecida, surgira na segunda-feira com recados, alusões, curiosidades mórbidas. Não, isto não era vida, realmente!