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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Do sul"

João-Afonso Machado, 07.07.11

Nada ficou afinal

depois das palavras afiadas

e apontadas,

nada restou

das suas estocadas.

Nada, nada,

senão uma rua esburacada,

sem olhos e sem coração,

gélida, irada,

nem minha nem tua,

somente nua.

 

Nada ficou,

sequer uma história

além das pedras

sobre os ossos da memória.

 

Nada ficou,

nada restou,

fora decerto outros areais,

outros sorrisos

para onde vais.

 

 

E mesmo se ouvires qualquer lágrima

escorrer mais a norte,

afasta-te, foge sempre,

 

que a tua sorte

e o teu azul

hão-de chegar

vindos do sul,

 

do outro lado de onde nada ficou,

nada restou.

 

 

Horticultura

João-Afonso Machado, 07.07.11

A boa-disposição dos vizinhos contagiava-me. Ao ponto de gargalhar ante a tua expressão de terror quando encaraste a enxada, o sacho, a mais ferramenta, e o teu olhar em volta, arrepiado, não fosse dares de frente com o carrasco de Ana Bolena...

- Tem calma, esse é o meu quinhão. O teu está ali.

E apontei para a sacada de nabiças, para o cebolinho e as alfaces. Também para o molho de varas secas, prontas a espetar na terra, as estacas onde serpentearia o feijão.

Ainda por estrear, muito cor-de-rosa, o par de luvas de borracha comprado na véspera. Depois de serões e serões de peroração, o regresso à lavoura vira-se subitamente prejudicado pelo estado das tuas mãos, como proteger as unhas, cuidadíssimas, da violência do trabalho?

E sem mais quê, principiei a cavar regueiras no talhão. Uma manhã de sábado dedicada ao exercício fisico, essa é que era. O resto se veria...

Descontraidamente, sem pressas, foste verificando todo o equipamento adquirido na época. Enquanto rolavam torrões, quais cabeças de todas as mulheres de Henrique VIII e de quantos o monarca rotulou de conspiradores. Aparentemente alheada das exigências da produtividade, topaste o tubo da mangueira, a torneira nas imediações, e vai de me atirar um borrifo de água às costas. Respondi com a vítima por último decepada, lançada às tuas sandálias, e ambos nos concentrámos então, no esmero da nossa horta.

E assim prosseguimos nos fins-de-semana sequentes. Afinal, nada custava colocar, um a um, os pés de couve nas trincheiras por mim sulcadas. Nem cobrir a plástico o morangal, protegendo-o dos melros. Nem tudo o mais, se não contendesse com as tuas lindas mãos que mesmo eu não queria ásperas, calejadas. Esperava-as, quando enfim o nosso labor deu frutos, a terrina, a faca da cozinha, os tempêros e a tua imaginação. A equilibrar os efeitos da costumeira rojoada minhota do almoço de sábado. Um almoço biológico, como se vê.

 

A noite, o dia e toda a gente (2)

João-Afonso Machado, 07.07.11

Fora sempre assim. As suas interrogações, satisfizesse-as ele, querendo. Como não fosse da mais curial educação um esclarecimento, o conforto de uma frase com princípio, meio e fim. Uma base sólida, um ponto de partida, uma nesga de coerência, já agora. Qualquer certeza perdurando minimamente no tempo. Enfim, tudo o que aquele ser privilegiado exigia para si e recusava aos outros. Usualmente com um olhar translúcido, insondável, de poetisa extasiada.

De pensares largados à solta a toda a medida da janela, parecia não ver nem ouvir o trânsito automóvel na rua. Acordou-o um toque rápido, contundente, na ainda tremelicante porta do gabinete. A colega nova, recém-admitida, informava-o de que o Sr. Dr. o chamava.

- Obrigado, vou já…

E uma vez mais estranhou-lhe o sorriso aloirado, mesmo a presença da… (como se chamava a rapariga?...) em mostra permanente da sua dentição, farta cabeleira, bamboleante, agora muito íntima dela, a sua confidente, juraria. Como tantas outras, ainda há pouco mantidas a uma distância púdica e ostensiva – a distância conveniente ao rígido papel então representado, o da mulher casada e bem casada.

 

II

A romagem àquela sala ampla da Direcção era tudo menos entusiasmante. Pelo menos para quase todos… A mesa ao fundo, desarrumada, povoada de pisa-papeis, memorandos e canetas de boa marca, uma cadeira aparentada com os tronos reais e a estante monumental, repositório de diplomas, medalhas comemorativas, fieiras de livros que o tempo ia comendo pelo desuso. Sobrelevavam no espaço a severidade e o anacronismo das bibliotecas monásticas, o sussurro de quem chegasse, receoso, sem coragem para apontar teias de aranha. Mesmo porque o privilégio das críticas cabia em pleno ao Sr. Dr. Um homem seco, mais para o baixito, sexagenário avançado. Raramente largando o seu covil, o dito cadeirão de reinante. Era lendária a sua voz cava, ponderosa, um labirinto de entrelinhas. Sempre impecavelmente apresentado – o blazer, a gravata, o lencinho… – imaculadamente inteligente e imprevisível – sempre! – conquanto pouco dado à injustiça. Ainda assim, inquisidor até ao susto.

Um breve espanejar de olhos foi a ordem para se aproximar, e o silêncio continuado o sinal de que vinha aí tema grave, contundente.

- Então essa inspiração?,

ouviu enfim, enquanto o mirava nos olhos, fazendo jus ao galardão que o posicionava no restrito escol dos não impressionáveis. Nem foi além de um comedido acenar da cabeça.

- A escrita em dia?

- Sim, creio que sim…,

em tom de quem aconselha – desembuche, ande lá. E os segundos seguintes, nessa espécie de “jogo do sério”, cessaram com o Sr. Dr. bufando profundamente. Não valia a pena, este não tremia das pernas…

- Pois é, meu caro. Creio que temos de avançar para algumas remodelações. Isto assim não pode continuar…

Arqueou as sobrancelhas, simulando surpresa. Um quase imperceptível esgar do seu interlocutor valia apreço pelo seu sangue-frio, à mistura com recados de moderação. Não arriscasse em demasia…

- Sejamos claros: está na altura de mudar de gabinete. Decerto não discordará…

- E porquê, Sr. Dr.?,

interrompeu sem perder o seu baixo timbre de voz, os faróis direccionados. Ora porquê!!! Porque uma empresa inteira sentia e lhe transmitia o pesado ambiente, notoriamente maléfico, que dela se apoderava. Com motivos bem à vista…

- Desde que você anda às turras com a sua mulher… enfim, com a sua namorada, toda a gente…

Já não logrou segurar um gesto rasgado de enfado. Saturação total. Toda a gente! Sim, toda a gente, até a morenaça da página literária, quase uma desconhecida, surgira na segunda-feira com recados, alusões, curiosidades mórbidas. Não, isto não era vida, realmente!