I
Estavam sozinhos, ele sentado à secretária, rodeado de papeis, quando as palavras lhe caíram em cima, num estrondo esganiçado:
- Já daqui para fora! Bêbedo e mulherengo! E com um pontapé no cu bem dado, devia era ter sido antes!
Desgrenhada, descomposta, desnorteada. De pontaria a esmerar-se em lançar-lhe pedras à cara. Como se, aparentemente, os seus deslizantes dizeres na recepção dessa tarde – investida negocial, tinha explicado – em nada colidissem com tão desbragada atitude. Onde se sumira a erudição prodigalizada ante os convidados, o seu polimento, a interessante conversa sabiamente mantida, sempre naquele notório apetite de se sentir o centro das atenções?
Olhou-a bem nos olhos: isso seria o bastante para expressar a sua reprovação. A sua óbvia indignação. Estava fora de causa responder-lhe de outro modo. Não porque não fosse um exaltado, – ou, pelo menos, como tal conhecido – mas, para todos os efeitos, um exaltado sempre condicionado por algum pudor impeditivo de descer a níveis assim rasos.
Já ela, porém, abandonara o gabinete, batendo a porta violentamente, demolidoramente. Com um suspiro profundo voltou à caneta e ao bloco-notas, sem outro intuito senão o de rabiscar qualquer coisa, alguma frase desgarrada, o alicerce de uma ideia firme. A memória aflorou, então, solidária, prestável, muito em seu auxílio. Refazer o percurso que o conduzira a este recorrente fartote de humilhações teria decerto utilidade.
Haviam decorrido quase dois anos. Quis o acaso ambos iniciassem em simultâneo colaboração escrita com a Revista. Um trabalho empenhado, de parte a parte, a absorvê-los quase totalmente. Era necessário dar boa conta de si. Ainda assim, com breves intervalos para um café, o lanche, uma sande engolida à pressa em marés de maior expediente. Rapidamente a cavaqueira se descomprimiu e galgou as questões profissionais. A vida pessoal dos dois também era tema e havia, descobriram num instante, amigos e conhecidos comuns. Foi a ponte que abriu caminho aos prolongados telefonemas em que ocupavam os seus serões.
Conversavam animadamente e as insistências dela na inocência dessa palração não o incomodavam. Era natural…
(- Sim, claro, mas quem falou em algo mais do que isto, que é nada?),
tranquilizava-a, demonstrando inexistirem da sua parte juízos precipitados, enquanto contabilizava as suas revelações, a espantosa quantidade de informação que percebia ser possuidora a seu respeito. E, fazendo-se distraído, fingia não alcançar o interesse bem espelhado por essa frenética curiosidade. Apreciava o seu sentido de humor, o epíteto de “cavalheiro” com que, entretanto, fora já agraciado.
- É uma excelente pessoa, disso não tenho dúvidas!,
doseava ela, também, as muitas alusões aos muitos candidatos à sua mão. De resto (e sobretudo), sentia-se contribuindo para a felicidade dele com aquelas noitadas ao telefone. Era uma obrigação por si alegremente cumprida, a de o ajudar numa fase da vida que adivinhava menos boa. Uma missão recaindo sobre todos, a de ajudar o próximo… Com prioridade para os mais sozinhos…
- Olhe lá, porquê essa necessidade de se justificar tanto?,
atirou-lhe um dia à queima-roupa. Embatucando, prosseguiu o discurso moralista, muito caritativa, providencial. E não respondeu.