Um minhoto na Capital
E, de repente, foi um espirro monumental, quase capaz de descarrilar o eléctrico. Em boa verdade, com uma generosa carga de perdigotos para cima de mim. Sorri resignadamente e obtive em troca um pedido de desculpas.
- Por nada, deve ter sido da pimenta...
- Da pimenta?!,
sobressaltou-se, agora curiosa, finalmente espontânea. Tive de lhe explicar tudo. A gola da samarra perdia pêlo, quando a comprei - na Feira da Ladra, sei lá há quantos anos, no tempo em que os meus primos citadinos me convenciam a Feira da Ladra era o centro de negócios da malta do gamanço. Era eu miúdo, evidentemente...
Abismada, prestes a entrar em colapso - mas porquê?, interrogava-me, admitindo já ter asneirado - num arrepio de cima a baixo, a menina (sim, casada não devia ser) não conseguia acreditar, quase não articulava palavras:
- Então a samarra...
Claro, a samarra, em segunda mão, custara-me 50$00, incluindo um isqueiro a gaz num dos seus bolsos... E, toda ela palidez, vi-a recuar para onde não havia espaço de recuo, a boca num esgar pavoroso... Tentei tranquilizá-la:
- Mas depois foram mais 800$00 em duas lavagens a seco. E a pimenta, só lhe digo, é como cola no pelame da raposa. Volta e meia, à cautela, mais uma dose...
Saíra muita gente, entretanto, numa paragem ali para os lados da Sé. Razão porque se foi encaminhando para a traseira do eléctrico e eu na peugada, a fugir também da marabunta, em busca de um bocado de ar mais respirável. E tentando sempre lhe abrissem alas, coitada, tal a sua pressa.
- E a gola ficou óptima, não acha?
- Acho, acho...,
enquanto numa aflição se pendurava no correame da campaínha.
- Fico nesta paragem...
- Então, menina, até amanhã!...
- Até amanhã...
Um "até amanhã" que se me guardou na alma até hoje. Mesmo dito assim apressadamente, à saída do eléctrico, algures em Lisboa, sob os rigores do inverno.
(- Isto aqui é a Graça,
disse-me não sei quem quando, por fim, alcancei ser já noite.)