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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Num futuro breve

João-Afonso Machado, 18.12.10

« (...). Mas estamos ainda no capítulo da historieta medonha. A Fernanda, um filho e um companheiro que não a quis e a deixou; e, mais recentemente, um assento de secretária, o seu ganha-pão, a sopa do menino, tudo sumido pelo raio das falências. Carlos é um hino à Solidariedade, a encarnação da Revolta.

- Malandros! Vigaristas!

E propõe-se esfolar quem a Fernanda achasse por bem à justiça e apaziguação que lhe são devidas. Ela redargue com proposições de bom-senso, os tribunais tomaram conta do assunto, o busílis está em que os tribunais são um caracol que se baba devagarinho, pegajosamente, sem sair do sítio. Tem estilo a Fernanda! E se...

- É da Monarquia, de um Rei que ame o seu povo, que todos precisamos!

O Carlos abocanha a ideia. A Fernanda não oculta a sua curiosidade pela bizarria da ideia. Um rei! Isso ainda há?

De uma silhueta de um guerrilheiro dos trópicos foge um sorriso luminoso, transfigurante. Lança a perna a um dos bancos do jardim e chama-a a si, irresistível como um messias.

- Onde estiver o Rei há o carinho e a dedicação que a ninguém é escusado.

O Rei, a Casa Real. Uma Família que é de todos, que a todos se dá e que sustém o farto conjunto de famílias que dá corpo à Nação».

 

(Foi Quase, DG Edições, 2006)

 

Presidenciais - os debates (II)

João-Afonso Machado, 17.12.10

Foram antecipadas as vimaranenses Gualterianas do ano que vem. Com o especial programa da luta corpo-a-corpo. Soou a charamela e os combatentes chegaram-se. Atacou o Mouro (encomendado em Viana do Castelo): "há quem não goste da aproximação do BE ao PS". A punhalada ficou no ar... Logo ripostou o Ético Cruzado invocando a sua experiência política. Porque a do adversário - auto-reconhecidamente - era médica e autárquica. Ainda aqui não se verificaram ferimentos.

E foi referindo as suas "disputas na AR". Pois que se não digam, concordamos todos. Mais uns mimoseios, a proclamada humildade de não se falar na experiência parlamentar - cortesias de parte a parte, em suma, - e um ataque avassalador contra... Cavaco Silva. Um dignitário ausente!

O Ético assim desprezava o Mouro. Simpáticamente, paternalmente. Sem revolta do, já na 1ª Dinastia, submetido e nada problemático opositor.

A sinistra pestilência do Presidente/Governo de Direita pairou no ar. E o Ético Cruzado cavamente profetizou, a ocorrer essa epidemia, o triste fim do Serviço Nacional de Saúde. Como quem diz - não me apoiais, ides todos para o inferno. Aliás, recorrendo às antigas leituras: "a opinião pública não é a opinião publicada" (vd. D. Carlos, Rei de Portugal).

Entre o choque dos aços, ouviram-se outras palermices sobre os macabros despedimentos laborais - e mais ais!, como aleivosias visando direitos sociais.

A assistência quase dormia já. Ainda o Mouro ensaiou o tema da corrupção e do clientelismo, mas sem sucesso. O adversário insistia nos ataques ao cavaleiro Cavaco Silva. Acabaram os dois contendores em uníssono contra esse fantasma.

E, a finalizar, tropeçaram os farsantes na saga dos paladinos dos sacrificados pela crise. De tal maneira que a espada do Cruzado Ético, levada no entusiasmo, ceifou a cabeça do Mouro. Este, ao cair de bruços, enterrou o punhal no peito do outro.

Menos dois, portugueses!

 

O "Arranha-Céus"

João-Afonso Machado, 16.12.10

Em pleno consulado salazarista, a verdade é que o Porto crescia. Estou em crer, por efeito do empreendedorismo das gentes da cá, mais do que por amabilidade do Poder político. A Praça de D. João I é um caso exemplar, em plena Baixa.

Veio a cavalaria, perpetuando-se em bronze, vis-a-vis, logo impelindo a população, sempre jocosa, a rebaptizá-la "Praça de Entre-Cús"; veio o visionário ímpar que foi Artur Cupertino de Miranda, trazendo o Palácio Atlântico, vale dizer, a sede do seu BPA. Isto em 1951.

Mas já antes, desde 1945, a Praça tinha o seu especial motivo de orgulho - esse alentado prédio, uma colmeia de serviços - companhias de seguros, escritórios diversos e, acima de tudo, consultórios - dos mais conceituados médicos da cidade.

Era um arrastar de grades a tarde inteira, os elevadores num subir e descer contínuo, sem descanso. Eram os mármores, os baixos-relevos, os azulejos nos corredores infindos, onde empregadas de bata branca, sizudas e entradotas na idade, tão dedicadas aos Srs. Drs., não deixavam as crianças andar de patins nem fazer corridas de carrinhos.

Das janelas cá para baixo se distraíam esses dolorosos momentos de espera. Os velhinhos autocarros de dois andares ali paravam. Os gigantescos placards do Rivoli anunciavam filmes fantásticos que iam somente na imaginação, para os menores de 12 anos... A não ser, talvez, nas férias do Natal, dependendo da pouca carga de disparates acumulada entretanto. Qualquer Walt Disney, por norma. E os eléctricos surgiam de todo o lado, para trás e para a frente, em Sá da Bandeira (enorme a necessidade de uns binóculos para devidamente tirar as medidas às montras dos Bazares Paris e Londres...), ao longo de Passos Manuel, rumo aos Aliados... Sempre tangando, como escrevia o tripeirissimo Rubem A.

A construção do prédio foi ideia de Maurício Carvalho de Macedo, um amarantino... E, uma vez concluida, ofereceu ao Porto o mais alto edifício de todo o Portugal - com os seus oito andares!

Cheios de jactância, os portuenses imediatamente o apelidaram com o nome ainda hoje mantido: o Arranha-Céus.

 

 

Presidenciais - os debates (I)

João-Afonso Machado, 16.12.10

Começaram, finalmente! Os jogos da competição que mais interessa aos portugueses - um inquilino para Belém, com renda paga por todos nós. Nesta primeira eliminatória, pontificaram os candidatos presumivelmente das divisões mais baixas. Com escassa assistência no pelado. Mesmo assim, aqui fica o relato.

Pobres que são, pobremente falaram. Para os pobres. Numa avançada mais elegante, Fernando Nobre quadrangulou o sistema "perverso, caduco, ultrapassado, retórico". Marcou um golo.

Francisco Lopes tentou o contra-ataque, valendo-se da estafada táctica da militância partidária contra a ditadura, desde as suas épocas sub-21. Não foi longe.

(Camarada: eu milito pela Monarquia desde os meus 15 anos. Contas por alto, temos ambos a mesma coroa de glória na luta anti-fascista. Nem isso, nem nada, me faria candidatar, no entanto, à mais alta magistratura da cisão nacional).

Na derradeira fase do prélio, foi a pressão sobre o tema da fome. Mais um tento de Nobre: de cabeça, rememorando os mais miseráveis casos que os seus sentidos presenciaram por esse mundo fora, onde Portugal, apesar de tudo, ainda passa despercebido.

No termo da disputa, algumas vaias de Lopes a reclamar, entoadamente, - "eu quero o meu minuto". Ganhou o período de descontos. A última palavra é sempre deles, sabemos nós.

Fernando Nobre, digo eu, ainda poderá constituir uma surpresa nesta Taça...

Ao que consta, os dois rivais confratenizaram depois, galhardamente, em lustrosa deslocação a Freamunde, embeiçados no famoso arroz de capão. Para esquecer privações e desilusões pretéritas.

 

O novo design republicano

João-Afonso Machado, 15.12.10

Já desde os finais da Década de 80 do século passado, a nossa prezada República pós-moderna vem estudando as novas estéticas políticas e sociais. Manifesta e fatalmente, a Ilda envelhecera, fenecendo com ela a proximidade e o diálogo, sempre impriscindíveis de manter com o povo. O assunto foi mesmo objecto de análise de uma comissão parlamentar criada para o efeito.

A solução parece ter vindo da congénere italiana, através do arrojo de uma deputada por todos disputada que, simpáticamente, correu a Lisboa apresentando as suas propostas.

Destas, a primeira foi de imediato aprovada na Assembleia da República. A segunda, que a foto oculta - mas em tudo idêntica à outra - não subsistem dúvidas, será também favorávelmente votada.

Restará acrescentar que estes estimulantes contactos entre regimes irmãos decorreram sempre no melhor ambiente de cabaré e patriotismo.

 

Trovas do Bandarra

João-Afonso Machado, 14.12.10

 

Era uma rua sem nome. Pelo menos, à noite. Estreita, escura, sinuosa até ao lampião que bruxeleava na extremidade oposta. Podia ser a Rua do Medo, tão medieva como as trevas ou a ausência de vida e de portas, do mais que fosse além do granito e de uns postigos emudecidos.

Ouvi os passos cautelosos de Gonçalo Anes. Senti as suas profecias. Como ele, não duvido da volta de D. Sebastião. Como ele, mesmo antes de Alcácer Quibir, tenho por certa a imortalidade do Rei. Por isso, não precisei do olhar nem do tacto para, nas paredes dessa rua ainda guardando o eco da intransigência, descobrir a inscrição, outra mensagem do sapateiro Bandarra.

Triste, acabrunhado, esforçando-se por perdoar os que o proibiram de se debruçar sobre a Biblia e escrever Teologia. Gonçalo Anes - ninguém, como tu, gosta de mordaças, mães despudoradas da Ignorância. Ainda hoje as suportamos, mais lassas embora. Vem, por isso, completar a obra que deixaste a meio. A tua Estrela de David e a nossa Cruz de Cristo aprenderam, entretanto, a dar as mãos. Olha-as gravadas na pedra, Trancoso é livre, o teu povo também. O que nos separa é nada, une-nos a luta contra os inimigos do Rei. Do Messias que anunciavas há 500 anos...

A tua comunidade conquistou o respeito que lhe é devido. Vai esquecendo, até, as afrontas de séculos. E orgulha-se dos teus irmãos que o nosso - e vosso - D. João II chamou para seus principais conselheiros.

A luz já voltou às velhas ruas de Trancoso. Urge projectá-la no Futuro.

 

Um caixeiro-viajante do Norte

João-Afonso Machado, 14.12.10

A D. Consolação estava numa ânsia. Durante a tarde não largou a varanda, prá Rodrigues de Freitas, a ver se o espichava ao longe. Fora para Arentim?, Mandim?, Pequim? - como ele dissera? Mandim não seria, ali a dois passos, ainda antes do Castelo da Maia... E a desconfiança instalava-se na sua alma. Por onde se passearia o diacho do home?

Chegou essa noite, para sossego da D. Consolação.

- Por onde andaste tu, home de Deus?

- O patrão mandou-me longe, a topar freguesia nova. O negócio está ruim. Traz-me de comer, anda!

E poisou a maleta de tábua, o seu mostruário, onde sempre enfiava uma camisa engomada e um par de cuecas, à mistura com ferramenta, os berloques da fabriqueta onde trabalhava e um lápis para as contas. Desengravatou-se e lançou o chapéu ao cabide da entrada.

- O que há para a janta?

Vinha esgotado. A viagem enorme, como nenhuma outra, em toda a sua vida. As gentes, estranhissimas, baixinhas, sem barriga e, a bem dizer, sem olhos. Quase não se compreendendo o que diziam. Dormiu mal na pensão, comeu pior, em vez de vinho, deram-lhe chá...

- Desgraçado... Mas agora sempre aqui tens um caldinho e o entrecosto...

consolava-o a D. Consolação, quase tão bem consolado como por aquela moçoila, um nada amarelada, que o cliente lhe pusera a trepar pelo corpo acima, ainda se ria com as cócegas da danada, oh! raio de noite...

(Mas isso não era conversa para a D. Consolação. E o Vieira, o Amado, o Augusto Silva, o Pereira e os outros - haviam de jurar pela saúde dos filhos todo o segredo, se quisessem amanhã saber mais pormenores.)

- Mas então que vendeste tu?

- Nem sei bem. O patrão chama-lhes soberanas. Cá para mim é só papel...

- E que tal te saiste?

- O patrão não vai gostar. O freguês era a modos que meio japonês. Falar com ele e falar com a tonha ali da avenida era o mesmo...

- Atão ficaste mal?

- Se o patrão quiser aceitar patacas, o baixinho prometeu comprar...

- E que faz o teu patrão com as patacas, home?

- Diz o chino que as funda. Ele depois compra-as outra vez, a peso.

- E para quê?

- Para fazer balas de pistola. Lá na terra mandam matar a tiro os que apanham a roubar.

- São mais finos que os nossos...

- Ora cala-te, mulher, e passa-me essa garrafa.

 

Às voltas com a crise

João-Afonso Machado, 13.12.10

Mais um Prós e Contras, hoje. O tema: "Compreender a crise". Os convidados: D. José Policarpo, Cardeal de Lisboa, e os Profs. Adriano Moreira, José Barata-Moura e António Barreto. Respigo, apenas, excertos da suas intervenções que acentuam o pendor do seu pensamento.

Serenamente, o Senhor Cardeal frisa a alma, a identidade cultural portuguesa, decerto a estas horas um tanto confundida, baralhada, com todos os inconvenientes daí decorrendo. Ao ponto de a democracia participativa ser apenas uma irrealidade.

Por seu turno, o Prof. Adriano Moreira vai à História buscar a Igreja, a Aliança luso-britânica, a CEE/UE para explicar o momento actual. E prossegue em detalhadas análises no campo do Direito Internacional Público, almejando sempre enquadrar as nossas fragilidades.

Do Prof. Barata-Moura não se esperaria não alicerçasse a crise nacional em razões de ordem política economica-financeira. Utilizando palavras suas, as "aventuras especulativas" são a alma do diabo e o corpo da lusa desdita. Concretamente, no que tange ao serviço de saúde e aos direitos laborais. E tudo sempre na óptica de uma cabala mundial. Só podia ser assim, levando em conta as bases das suas convicções filosóficas.

Já na reflexão do Prof. António Barreto vou encontrar a - tão distante e tão acessivel - constatação de que, de há 40 anos a esta parte, o Mundo globalmente melhorou. Nós, portugueses, é que não acompanhámos esse melhoramento. "O que andámos a fazer" durante esse tempo, inquire António Barreto?

Pois claro. Obvia é a nossa humana pobreza de recursos e, assim, a nossa responsabilidade pelos nossos males. "Trabalhar e poupar", recomendou.

O debate vai a meio, mas afigura-se interessante. Intragáveis são - serão sempre - as constantes interrupções e àpartes de Fátima Campos Ferreira. Porquê essa necessidade de demonstrar que estudou a cartilha?

 

Trancoso à noite

João-Afonso Machado, 13.12.10

No termo de uma viagem cansativa, nesta época de dias curtos, a Porta de D. Dinis parecia abrir-se-nos num sorriso alumiado de boas-vindas. Assim transpusemos a muralha do castelo de Trancoso.

Eram quase horas de jantar e a fome dividia-se entre as prometidas delícias gastronómicas e aquele emaranhado de vielas escurecidas, sombras inteiras de histórias e mistérios. Assim deixei para trás o Beco do Bandarra - o sapateiro Gonçalo Anes -, dezenas de recantos e descobertas adiadas. Com grande pena minha.

Falhou, completamente, o tempo para investigações e inquéritos. A toponímia foi um vazio aberto na curiosidade, mesmo porque - prioritário, prioritário, - era estacionar o carro e alancar para o restaurante. Em Trancoso, adentro das muralhas, não existe construção em altura e são várias as praças, os jardins, sobressaindo da patine das pedras. Perante mim, súbitamente, uma fachada imponente, armoriada, com boa carga de séculos em cima, e os canteiros e os arbustos de um pequeno parque a servi-la.

Pois, ainda assim, muda, cega, moribunda. Pareceu o conto do costume: um mal principiando nas janelas, porque as vidraças sempre foram a atracção-mor das fisgas; as pombas, aos bandos, a contribuirem para a sua podridão; as portadas que as chuvas, os verões, a incúria dos homens, destruiram; o improviso (o sarcasmo!) de umas tábuas quaisquer a substitui-las; morcegos, noites, fantasmagorias, a acentuar o distanciamento; e o aspecto final, da mais deplorável indigência.

Como se Trancoso acabasse de apunhalar uma filha sua. Sibilinamente, colorindo-lhe o cadáver com os tons da vegetação defronte. Que ocultavam, também, sabe-se lá quantos episódios do romanesco passado beirão.

 

A verdade vem sempre à tona

João-Afonso Machado, 12.12.10

Eu podia aproveitar o ensejo e contar aqui uma grande mentira. Nada menos do que algum empolgante lance ocorrido nos Açores, na Bretanha, senão com fantasmas multisseculares, pelo menos com um vulcão desvastador, ou um naufrágio assassino. Mas é feio faltar à verdade. E nada me garante não haja Internet em Foz Côa e, certamente, um entusiasta grupo de seguidores do CF. A denunciar-me. Daí o meu comedimento. Eram oito da manhã e o termómetro acusava 3º C. Em plena freguesia de Chãs, depois de muito caracolear em estradões de terra batida, ainda na Região Demarcada do Vinho do Porto.

Foram, então, penosas horas de marcha em que as vinhas eram uma felicidade só comparável às vias rápidas. No mais, montes acima, as giestas e as pedras soltas nelas escondidas infernizaram-nos o corpo, a roubarem aos nossos excessos gastronómicos o bastante para neles reincidirmos depois. Logo ao almoço, claro.

No que as pernas perdiam de forças, ganhava o espírito em alento, como se o purificássemos em reputadíssima lavandaria. No final da manhã, o mundo revestia-se já de outras cores. De outra forma de encarar a vida.

 Como se demonstra. As vides aguardam agora a indispensável poda. As oliveiras fartam-se de largar azeitona, tanta é a pancada que estão levando. Nas Chãs há ainda abundância de mel, figos e amêndoas. E não me consta reine por lá qualquer mercearia. Tudo se traz directamente do produtor.

Antigamente era assim, aqui e em muito mais. Agora... vou assistir, de retorno à civilização, às notícias da noite. A mais um episódio do Sócrates, Alegre & Cª - ilimitada.