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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O dia menor

João-Afonso Machado, 20.12.10

Julgo que é amanhã. Um dia minorca, muito menor do que o poder das máquinas sobre nós. Subjugados à porcaria dos computadores, essa rasteira, essa traição, esse canto de sereia, uma facilidade imensa e encravada. O mesmo grito de raiva e rebelião engrossa o protesto contra os afins. Máquinas fotográficas, imagens e toda a nomenclatura que me tira o sossego e me afasta da Paz: links, posts, tags, feeds, um estrangulamento de anglicismos (anglicismos? - quem dera: inglês imposto, sim!) e palavras de que a alma não é feita, e eu estou farto. Amanhã o sol acorda tarde e deita-se cedo. O sol sabe muito mais, mesmo dando de barato não necessitar de emprego. Mas a escravidão - nunca, em caso algum. Sobretudo quando o negreiro é uma máquina, ou são os seus caprichos.

Volto ao tempo da tinta permanente. Depois de amanhã, os dias crescerão em luz. Hei-de perguntar à secretária lá do escritório se ela é fiel à minha escrita. Senão, vai o computador janela fora. Antes ele do que eu, presumo.

E o mais serão batatas para cavar e comer. Com mais ou menos passarada a acompanhar. Dependendo das horas do dia... Antes a fome do que a dependência! Sobre todas as facilidades, a liberdade de nada necessitar...

(A mais legítima revolta. A única que aprendi em João Camossa. Aquela de que nunca abdicarei).

 

Fim de tarde no Chiado

João-Afonso Machado, 20.12.10

Até os lisboetas vivem o Natal no frio. Outro frio, menos frio, em que não há rabanadas e eles se contentam com fatias douradas... Enfim, excentricidades. Mas o Chiado, sim senhor!, é de se lhe tirar o chapéu. Gente interessante, gente exótica, grandes vultos da história. E a multidão, a chuva a crucificá-la, - será que a multidão repara nesses momentos de excepção?

Há nada, ainda, Dâmaso Salcede aflorava à porta da Havaneza. Pendurado num charuto óbvio, de chapéu alto, tons claros - nesta época, pobre imbecil - e um véu azul enlaçado, cadente... Sempre rubicundo, radioso, rotundo!

(Coitado, coitadinho, coitadíssimo!).

Não, a discrição de Fernando Pessoa é - acintosamente - mais convidativa. A incontornável comoção do seu perpétuo silêncio, da escrita torrencial, arcas e arcas de palavras suas, decerto ainda por virem à luz dos dias. Consta, porém, ele não enjeitar a companhia breve de um ou outro. Um café, uma bebida, dois ditos, talvez uma opinião...

- Boa tarde, Sr. Pessoa!...

Regela-se em Lisboa. Sente-se também a solidão, Ofélia não é presente

(Tenho estado muito triste, e além disso muito cansado - triste não só por te não poder ver... já não és a mesma que eras no escritório...),

o poeta sofre, tortura-se, rabisca cartas, Fernando Pessoa é ali, é o Chiado, Ofélia longe, esse o drama e a sua obra e o desfecho de uma existência, muito não alcança a nossa limitada compreensão...

- Foi um prazer, Sr. Pessoa!,

porque, manifestamente, a tarde polar não se proporciona, paciência, Pessoa é o Chiado e, creiamos, o sol voltará por um desses dias. E vê-se que escreve e lacrimeja - deixemo-lo assim.

-Psst! Jovem?!

- Sim, Sr. Pessoa?

- A Europa jaz, posta nos cotovelos; / De Oriente a Ocidente jaz, fitando, / E toldam-lhe românticos cabelos / Olhos gregos lembrando.

- Belíssimo, Sr. Pessoa...

- ... Fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado. / O rosto com que fita é Portugal.

- Mil vezes obrigado, Sr. Pessoa. Sim, juremos a nós próprios termos sempre Natal!