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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Trovas do Bandarra

João-Afonso Machado, 14.12.10

 

Era uma rua sem nome. Pelo menos, à noite. Estreita, escura, sinuosa até ao lampião que bruxeleava na extremidade oposta. Podia ser a Rua do Medo, tão medieva como as trevas ou a ausência de vida e de portas, do mais que fosse além do granito e de uns postigos emudecidos.

Ouvi os passos cautelosos de Gonçalo Anes. Senti as suas profecias. Como ele, não duvido da volta de D. Sebastião. Como ele, mesmo antes de Alcácer Quibir, tenho por certa a imortalidade do Rei. Por isso, não precisei do olhar nem do tacto para, nas paredes dessa rua ainda guardando o eco da intransigência, descobrir a inscrição, outra mensagem do sapateiro Bandarra.

Triste, acabrunhado, esforçando-se por perdoar os que o proibiram de se debruçar sobre a Biblia e escrever Teologia. Gonçalo Anes - ninguém, como tu, gosta de mordaças, mães despudoradas da Ignorância. Ainda hoje as suportamos, mais lassas embora. Vem, por isso, completar a obra que deixaste a meio. A tua Estrela de David e a nossa Cruz de Cristo aprenderam, entretanto, a dar as mãos. Olha-as gravadas na pedra, Trancoso é livre, o teu povo também. O que nos separa é nada, une-nos a luta contra os inimigos do Rei. Do Messias que anunciavas há 500 anos...

A tua comunidade conquistou o respeito que lhe é devido. Vai esquecendo, até, as afrontas de séculos. E orgulha-se dos teus irmãos que o nosso - e vosso - D. João II chamou para seus principais conselheiros.

A luz já voltou às velhas ruas de Trancoso. Urge projectá-la no Futuro.

 

Um caixeiro-viajante do Norte

João-Afonso Machado, 14.12.10

A D. Consolação estava numa ânsia. Durante a tarde não largou a varanda, prá Rodrigues de Freitas, a ver se o espichava ao longe. Fora para Arentim?, Mandim?, Pequim? - como ele dissera? Mandim não seria, ali a dois passos, ainda antes do Castelo da Maia... E a desconfiança instalava-se na sua alma. Por onde se passearia o diacho do home?

Chegou essa noite, para sossego da D. Consolação.

- Por onde andaste tu, home de Deus?

- O patrão mandou-me longe, a topar freguesia nova. O negócio está ruim. Traz-me de comer, anda!

E poisou a maleta de tábua, o seu mostruário, onde sempre enfiava uma camisa engomada e um par de cuecas, à mistura com ferramenta, os berloques da fabriqueta onde trabalhava e um lápis para as contas. Desengravatou-se e lançou o chapéu ao cabide da entrada.

- O que há para a janta?

Vinha esgotado. A viagem enorme, como nenhuma outra, em toda a sua vida. As gentes, estranhissimas, baixinhas, sem barriga e, a bem dizer, sem olhos. Quase não se compreendendo o que diziam. Dormiu mal na pensão, comeu pior, em vez de vinho, deram-lhe chá...

- Desgraçado... Mas agora sempre aqui tens um caldinho e o entrecosto...

consolava-o a D. Consolação, quase tão bem consolado como por aquela moçoila, um nada amarelada, que o cliente lhe pusera a trepar pelo corpo acima, ainda se ria com as cócegas da danada, oh! raio de noite...

(Mas isso não era conversa para a D. Consolação. E o Vieira, o Amado, o Augusto Silva, o Pereira e os outros - haviam de jurar pela saúde dos filhos todo o segredo, se quisessem amanhã saber mais pormenores.)

- Mas então que vendeste tu?

- Nem sei bem. O patrão chama-lhes soberanas. Cá para mim é só papel...

- E que tal te saiste?

- O patrão não vai gostar. O freguês era a modos que meio japonês. Falar com ele e falar com a tonha ali da avenida era o mesmo...

- Atão ficaste mal?

- Se o patrão quiser aceitar patacas, o baixinho prometeu comprar...

- E que faz o teu patrão com as patacas, home?

- Diz o chino que as funda. Ele depois compra-as outra vez, a peso.

- E para quê?

- Para fazer balas de pistola. Lá na terra mandam matar a tiro os que apanham a roubar.

- São mais finos que os nossos...

- Ora cala-te, mulher, e passa-me essa garrafa.