Trovas do Bandarra
Era uma rua sem nome. Pelo menos, à noite. Estreita, escura, sinuosa até ao lampião que bruxeleava na extremidade oposta. Podia ser a Rua do Medo, tão medieva como as trevas ou a ausência de vida e de portas, do mais que fosse além do granito e de uns postigos emudecidos.
Ouvi os passos cautelosos de Gonçalo Anes. Senti as suas profecias. Como ele, não duvido da volta de D. Sebastião. Como ele, mesmo antes de Alcácer Quibir, tenho por certa a imortalidade do Rei. Por isso, não precisei do olhar nem do tacto para, nas paredes dessa rua ainda guardando o eco da intransigência, descobrir a inscrição, outra mensagem do sapateiro Bandarra.
Triste, acabrunhado, esforçando-se por perdoar os que o proibiram de se debruçar sobre a Biblia e escrever Teologia. Gonçalo Anes - ninguém, como tu, gosta de mordaças, mães despudoradas da Ignorância. Ainda hoje as suportamos, mais lassas embora. Vem, por isso, completar a obra que deixaste a meio. A tua Estrela de David e a nossa Cruz de Cristo aprenderam, entretanto, a dar as mãos. Olha-as gravadas na pedra, Trancoso é livre, o teu povo também. O que nos separa é nada, une-nos a luta contra os inimigos do Rei. Do Messias que anunciavas há 500 anos...
A tua comunidade conquistou o respeito que lhe é devido. Vai esquecendo, até, as afrontas de séculos. E orgulha-se dos teus irmãos que o nosso - e vosso - D. João II chamou para seus principais conselheiros.
A luz já voltou às velhas ruas de Trancoso. Urge projectá-la no Futuro.