Usos e abusos
A manhã correu péssimamente. Uma perdiz levantada na outra ponta do concelho, um coelhito avistado entre dois molhos de lenha, a bater o dente de frio, afogado em água até aos ossos... Porque a chuva, o vento agreste, não se calaram o tempo todo. Deitei a vista ao tempo antigo. A esses longínquos anos de abundância. Imaginei o regresso pela residência do Senhor Abade, a oferta das peças melhor preservadas a Sua Reverência, o convite para entrar um pouco, o cálice de vinho fino e os ladrilhos de marmelada. E umas rosnadelas de política, nesses idos das sotainas e da Senhora Jesuína, governanta e, obviamente, monárquica também. Sempre a persignar-se, arrepiada, o demo tomou conta do mundo e plantou nele a Maçonaria. T'arrenego!
- Nem mais, Senhora Jesuína, nem mais!
E vai mais um calinhos para o frio... E outro ladrinho, calorias é o que a gente precisa.
Mas não. Tudo sonhos. Já não há abades e sotainas (pintalgadas de caspa, invariávelmente), já não há governantas especializadas em marmelada, já quase não há caça, resta apenas a Maçonaria e este raio de meteorologia. Mandei às pernas voltassem ao lar.
Foi quando, um pouco adiante, a rapariga se pôs de volta de um silvado numa excitação frenética. O que seria? Um coelho?, uma raposa?, um elefante? Preparei-me para - vá lá... - um final feliz. E eis senão quando algo se solta de entre a vegetação, como um foguete, a rapariga atrás dele, desvairada... Arma à cara, uma mancha branca entre a verdura do trilho, espreito melhor... era o gato da casa! Esse malandro do Costa, gordo e lustroso como um deputado. Saíra primeiro, sem nada participar, e fazia a sua espera. Como na semana passada, em que tragou um esquilo. Agora apontaria aos melros, que o Senhor criou para cantarem ao entardecer e amarelar o bico durante o dia.
Está tudo mal. Já se diz por aí, 2012 será o termo deste nosso calvário. É bem possivel.