Arqueologias
O tordo perdera o comboio de regresso e foi ficando, estava cá no dia em que o apanhei com a máquina. A poisar, acabadinho de chegar de umas silveiras, onde trinava. E atrás de mim, então, uma voz inesperada:
- Interessante megalito...
(o esteio de uma ramada, já inexistente, de onde o tordo se alou, no maior alvoroço). A interpelante, essa, descia vagarosamente o caminho, muito sorridente, muito comunicativa. Não digo fosse citadina mas, sem dúvida, as suas roupagens não eram as mais adequadas àquelas andanças.
- E está classificado?
Eu não contava ser mentiroso. Mas a promoção do pobre esteio, com um pedaço de ráfia atado na ponta, seu único adorno, a tão nobre e veneranda condição foi mais forte. Além de que a vizinhança recebe turistas, há que valorizar a terra, puxar por ela.
- Com certeza, minha senhora. Classificadíssimo. Com notas elevadas, aliás.
(Até porque os seus congéneres, não reutilizados como ponteiras nos bardos das vinhas novas, fácilmente se vendiam, à mingua de gente para trabalhar o granito).
A senhora quis saber tudo. Expliquei-lhe a ligação daqueles monumentos à vitivinicultura. Desde tempos imemoriais. Dos celtas, talvez...
- Mas o vinho é assim tão antigo?...
Rematei logo, a controlar a temática:
- O vinho palhete sim, minha senhora. O vinho rosé - rosado como os celtas, na cútis. Olhe, como os ingleses que inventaram o vinho do Porto...
Ela permaneceu uns segundos em silêncio, encantada.
- Há uma ligação profunda entre estes megalitos, apontados ao firmamento, e o culto da morte. Ou mesmo com a fertilidade, com o culto da vida...
Entre a vida e a morte, prestes a estoirar em gargalhada, que certamente ofenderia tão distinta arqueóloga, pretexteei uma urgência qualquer e despedi-me. Não podia, nem queria, estragar o negócio turistico dos meus vizinhos.
(Mais além, jaz um túmulo pré-romano,efectivamente. Não me ofereci para o mostrar: podia confundi-lo com alguma talha de azeite e não se deve brincar com o sacro).