Incursões monárquicas
Saí em Santa Apolónia. Não sei por que ruas enveredei, em breve estava perdido... Com a minha mochila do exército holandês, uma sobrevivente da II Grande Guerra, subindo, subindo, decerto uma das sete colinas, ignoro qual delas.
Os eléctricos passavam, redobrando cuidados nos cotovelos das calçadas perigosamente escorregadias da chuva miudinha. Os eléctricos - uma recordação dos anos de estudante, o mais cómodo meio de transporte quando nos falhavam os trocados para comprar um bilhete...
Estava perto da Sé, informou-me um transeunte. A travessa dos meus fez a sua aparição, logo então (não, nada tenho a ver com essa casa de janelas enormes e entaipadas. Grandezas - nenhumas. Mas tinha chegado, afinal - à dita travessa. Encontrara, felizmente, o meu dialecto).
Fui andando. Lá mais à frente, depois da curva, a taberna do Sr. Antunes. Sem alumínios. Portas escancaradas, aquele inesquecível cheirinho a petisco. Entrei, freguês conhecido, e sentei. Nesse recanto longínquo, onde, ao revés das grandes avenidas, Deus existe... O raio da mochila levou-me para o branco duriense, contrabandeado aos pipos pelo compadre de Murça; e para os carapauzinhos de escabeche, para o paio e o chourição. Foi uma festa.
Dou mais pormenores: a minha casa é logo após. De janela ampla, colorida de craveiros, e a gaiola do meu Orlando (Dias Agudo), pintassilgo inseparável. Com espaço bastante para a voz de Amália, as letras simples de Irene Lisboa e as sorridente-tristes estrofes de O'Neill. É onde estou em paz. Onde todos nos conhecemos e a vida vive muito mais do que o cruzar de vidas nas escadas do metro. Não, daqui ninguém me tira. Como dispensaria eu os meus diários colóquios com o Sr. Antunes?
De resto, ambos colocámos - e outros vizinhos também - a multissecular bandeira azul-branca (e coroada) quando o Scollari pediu apoio ao povo para a selecção das quinas.