Lontras
Aconteceu há uns anos, no rio Vez, junto à vila dos Arcos. Numa manhã de pesca, com todo o mutismo e precauções inerentes. As trutas e os barbos e as bogas lêem as sombras, o estalar das ramagens, a pedrita que escorregou e caiu à água. Uma estátua por horas, um par de olhos fixo na corrente, nos sentidos, na ponteira da cana. De tal modo que a lontra não receou e surgiu.
Vinha encostada à minha margem. Rentinho às pedras, só dei por ela debaixo dos meus pés. Fossilizei. E gozei o espectáculo até à última - aquele nadar único, as rotações sobre si, a brincadeira contínua. A marotice da sua expressão, a graça dos movimentos. Já anteriormente me defrontara com outra, em Covelinhas, no Douro. Mas, sendo noite, não retivera essa imagem que é uma dádiva de que poucos se podem orgulhar - a lontra feliz no seu ambiente natural.
Ontem recordei-a em Avintes, num tanque, uma réplica, uma recriação do seu habitat. Não lhe topei tristeza, a angústia do cárcere. A lontra soube passar por cima das contingências. Não tem tudo mas dispõe do necessário. O «algo» é normalmente o bastante.