"Outubro com os bofes de fora"
Acabo de chegar de Paredes de Coura. É praticamente noite já. Em camisa (diurna), mangas arregaçadas e uma dose farta de calor acumulado, entranhado. Outubro vai a meio.
A gente não percebe o que se passa. Ouve falar no «aquecimento global» e assiste ao drama dos incêndios na televisão. E conclui: isto não é modo de vida; isto só pode ser o Sahara a subir por aí a fora. As estações do ano em completa indisciplina, o mundo a virar-se ao contrário e uma saudade enorme do tempo em que à chuva e ao sol competia o tempo da chuva e do sol. Para quando o amarelado e o acastanhado das folhas das árvores? Um ar mais respirável, a vinda do frio? É com a maior nostalgia que recordo os outonos de outras eras.
De quando as aulas no liceu estavam agora a começar e já demandavam uma camisola de lã. Longe vinha a maré da preocupação com os estudos, às vezes ainda não todos os professores haviam sido colocados, os “furos” eram festejados ribombantemente, e surgia sempre uma bola para os preencher. Mais uma horita de futebol, bem suado, no recreio, portanto.
E suavizámo-la em jogos renhidos. Mas, decerto, não o bastante para tirar a camisola. Em Outubro, o mês do regresso às aulas e a algum agasalho mais.
O mesmo com as pequenas, que já botavam meias e casaquinhos a amenizar o decote. Quando não, chovia e os blusões entravam ao serviço. Chovia às vezes a semana toda, a seguinte também, o mês a entrar na sua segunda metade e a conversa – confiante, rotinada - suspirava pelo Verão de S. Martinho. Não sei se recordam, esses dias solarengos de Novembro em que se comiam castanhas e se saltava a fogueira. Era, consabidamente, o derradeiro adeus à complacência do clima, antes dos rigores da invernia.
Mas, também, sem o Inverno pouco sentido faria o Natal. E as botas novas, a moda nova para o frio, em que as meninas depositavam tanta esperança de sucesso. Não! O mundo estava milimetricamente bem pensado, ora acumulava lenha para o fogão, ora floria na altura certa, pela Primavera, quando o cuco cantava, com os dias já tamanhões e o regresso a casa mais tardio.
Agora é isto. Há semanas que sonho com um lamaçal qualquer para me atolar. Fui caçar ao Alentejo e suportei – eram 11 da manhã! – com 33º em cima. Nem cheguei a perceber para que praia fugiram as perdizes todas – a água da charca (ou melhor: o que restava dela) era tão verde que até o cão teve náuseas e recusou o licor. Lá em cima, no Alto Minho, o Coura em definitivo adormeceu; consta que também as trutas emigraram, ou morreram de over-dose.
Em suma, saem frustradas as minhas expectativas de deixar a aridez do planeta como herança para os meus bisnetos. Seria, afinal, um belo capitalzinho, um estímulo para a aquisição de alguma moradia lunar. Ou para que investissem no “arrefecimento global”, na patinagem no gelo de Marte, e ganhassem uma pipa de massa. Assim não! Assim estorricamos todos neste braseiro infernal e não se queixem os bisnetos de não o serem porque o bisavô ou os avós pereceram de língua de fora, arquejando e rogando por uma garrafinha de água no trânsito imobilizado na auto-estrada. No regresso de Paredes de Coura onde, outrora, diz-se, pululavam os mamutes e outras espécies da saudosa era glaciar.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 19.OUT.2017)